Rui Leitão

Jornalista e escritor.

Geral

Os doidos intelectuais


01/06/2016

Foto: autor desconhecido.

 

João Pessoa, nas décadas de sessenta e setenta, contava com um confronto intelectual interessante. Duas figuras folclóricas que se tornaram conhecidas pela rivalidade que alimentavam um com o outro. Mocidade e Caixa D’água eram os doidos preferidos dos políticos e intelectuais paraibanos. Tanto que um gozava de prestígio com o governador João Agripino (Mocidade), e o outro era amigo do governador Ernany Sátiro (Caixa D’água). Até nisso eles estabeleciam disputa.

Ambos circulavam pelas ruas sempre vestidos de ternos. Caixa D’água costumava usar roupa branca, e dizia que apenas ele, o usineiro Renato Ribeiro Coutinho e Virginius da Gama e Melo vestiam iguais. Mocidade optava por cores escuras.

Os dois gostavam de tomar uns pileques. O tribuno era homem do dia, enquanto o poeta era um notívago. Mocidade bebia nos botecos da cidade, Caixa frequentava a Churrascaria Bambu, ponto de encontro dos intelectuais, artistas e políticos da terra.

Mocidade ganhou notoriedade pela oratória. Presença constante em velórios, onde fazia discursos enaltecendo o defunto, mesmo que não o conhecesse. Mas também se notabilizou pela veemência com que nas praças públicas discursava em defesa da liberdade e da democracia. Certa vez, num desses inflamados discursos, solidarizando-se com os estudantes em greve, protestando contra o governo do Estado, não poupou seu amigo, o governador João Agripino, e proferiu uma mensagem fortemente de oposição e de crítica à postura do governo naquele episódio. Na época ele morava num quartinho no quintal da casa de João Agripino, na praia do Cabo Branco. Tomando conhecimento do fato, o governador ficou até tarde da noite, deitado em sua rede na varanda da casa, esperando a chegada do seu hóspede rebelde. Ao vê-lo chegar lhe interpelou, questionando sobre as razões com que ele se posicionara contra quem lhe oferecia abrigo e comida. Respondeu no ato: “João, governo foi feito pra sofrer”. E nada mais disse, nem o governador também se sentiu a vontade para continuar na repreensão.

Caixa D’água, semianalfabeto, era mais dedicado à poesia. Chegou inclusive a publicar alguns livros, graças ao patrocínio de amigos. E saía à noite, perambulando pelos bares, vendendo-os. Num dos seus retornos para sua residência, que ficava no alto da Ladeira da Borborema, próxima à Catedral, tropeçando nas pernas em razão do seu estado etílico, se inspirou para produzir uma de suas pérolas literárias: “Ladeira da Borborema/eu subo em tu/mas tu não sobe neu”.
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Não sei exatamente a qual dos dois se atribuía a frase: “Para ser doido na Paraíba é preciso ter juízo”. O fato é que todos dois eram bem recebidos nos círculos de convivência da intelectualidade paraibana e dos ambientes de atuação política.

Mocidade não me conhecia, mas Caixa D’água me tratava pelo nome e não perdia a oportunidade, sempre que me via, para oferecer um dos seus livros e numa dedicatória cheia de erros de português, deixava orgulhoso o seu autógrafo.

• Integra a série de textos “INVENTÁRIO DO TEMPO II”.

 


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