Geral
“O poeta está vivo”
01/02/2014
Foto: autor desconhecido.
Quando Cazuza voltou de Boston, em 1985, onde esteve muito doente, Dulce Quental, ao visitá-lo escreveu a letra de “O poeta está vivo”, numa espécie de manifestação de regozijo pelo seu retorno e de homenagem ao seu talento poético. Frejat deu melodia à letra. Cazuza chegou a conhecer a música, mas só veio a ser gravada, pelo grupo Barão Vermelho, em 1986, após a sua morte. De qualquer forma nela está a afirmação de que, mesmo morto, Cazuza continua vivo na memória de todos nós brasileiros, apreciadores de sua arte musical. Não deixa de ser também uma mensagem de otimismo no futuro, não obstante dificuldades circunstanciais que se viva.
“Baby, compra o jornal e vem ver o sol/Ele continua a brilhar, apesar de tanta barbaridade”. O “eu lírico” convida a encarar a rotina no seu cotidiano, comprar o jornal, atualizar-se com o que está acontecendo ao seu redor, ser participante e parceiro na construção da vida coletiva. Afinal de contas é preciso enxergar o sol que se descortina a cada amanhecer, dando brilho ao sentido de nossa existência. A luz do astro rei nos oferece a certeza de que apesar dos problemas, das contrariedades e dos contratempos, um novo tempo renasce a cada dia.
“Baby escuta o galo cantar, a aurora dos nossos tempos/Não é hora de chorar, amanheceu o pensamento”. É importante ouvir o canto do galo anunciando o alvorecer, sinalizando de que há sempre um momento de renovação em cada nascer do sol. O raiar do dia não pode ser um instante para choro e lamentações. É hora de conhecer o que se apresenta como novas ideias, adquirir novos conhecimentos e, a partir desses ganhos, projetar o caminhar em frente.
“O poeta está vivo, com seus moinhos de vento/A impulsionar a grande roda da história”. Todo poeta é, por natureza, um sonhador. Cazuza viveu intensamente essas ocasiões de delírios e devaneios que inspiraram a sua obra. Mas é pelos sonhos que se estimula a criatividade e a busca da realização de tudo o que queremos alcançar. Em algumas oportunidades podem parecer ilusões “quixotescas”, mas nunca deverão ser razões para desistência do que se pretende realizar. O que faz girar a “grande roda da história” é a crença no imaginário, na fantasia.
“Mas quem tem coragem de ouvir/Amanheceu o pensamento/Que vai mudar o mundo com seus moinhos de vento”. É preciso ousar, saber ouvir e avaliar o que nos é ensinado. Sempre que experimentamos um novo saber, nos dispomos a assumir posturas transformadoras no nosso existir, questionar conceitos pré-estabelecidos pela sociedade, e, assim, oferecermos nossa contribuição para a mudança do mundo. Os sonhos, moinhos de vento, terminam sendo instrumentos revolucionários.
“Se você não pode ser forte, seja pelo menos humana/Quando o papa e seu rebanho chegar, não tenha pena”. Nessa estrofe o “eu lírico” faz uma crítica à postura conservadora da igreja católica em relação ao sexo, condenando inclusive o uso da camisinha. Cazuza era, declaradamente, um amante dos prazeres sexuais. Então o “eu lírico” chama à percepção da importância das pessoas se compreenderem como seres humanos, vivendo com intensidade seus sentimentos e emoções.
“Todo mundo é parecido, quando sente dor/Mas nu e só, ao meio dia, só quem está pronto para o amor”. Realça que somos todos iguais, e só entendemos essa verdade na dor. Indiferente de nível social, pobre ou rico, poderoso ou desamparado, o ser humano padece das mesmas dores corporais, sem distinção. É o ensejo da observação de que somos todos iguais. Quando coloca “nu e só, ao meio dia”, ele quer dizer que só estamos preparados para o amor quando nos vemos despidos de vaidades, ambições egoístas, inveja, e todos os sentimentos que nos fazem pequenos, numa exposição transparente de sua individualidade, de forma tão clara quanto à luminosidade de um “meio dia”.
“O poeta não morreu, foi ao inferno e voltou/Conheceu os jardins do Éden e nos contou…”. Refere-se à enfermidade de Cazuza, onde conheceu o sofrimento de uma doença que o encaminhava à morte, “esteve no inferno”, da mesma forma em que passeou pelos “Jardins do Éden” nos seus devaneios. Isso nos possibilitou receber o legado que nos deixou como poeta. Então o “poeta está vivo”, como diz a música.
• Integra a série de crônicas “PENSANDO ATRAVÉS DA MÚSICA”.
O Portal WSCOM não se responsabiliza pelo conteúdo opinativo publicado pelos seus colunistas e blogueiros.
Os comentários a seguir são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site.