Sociedade
O clero politizado
30/06/2025

Num primeiro momento após o golpe de 1964, a cúpula da Igreja Católica parecia marchar ao lado dos militares. Mas o tempo revelou outra face do clero brasileiro. À medida que o regime endurecia, setores significativos da Igreja passaram a confrontar a ditadura, assumindo papel ativo na defesa da justiça social e dos direitos humanos, especialmente entre os mais pobres. Esse engajamento, contudo, passou a ser visto como subversivo por um governo que equiparava qualquer discurso em favor dos excluídos a uma ameaça comunista.
Do outro lado, havia também religiosos que defendiam o regime, ecoando o discurso da luta contra o “perigo vermelho”. A Igreja se via dividida entre a tradição conservadora que se postava em posição contrária a mudanças e reformas propostas, e uma ala progressista que se aproximava das lutas populares. Figuras como Dom Hélder Câmara, Dom José Maria Pires e Dom Fragoso tornaram-se símbolos dessa resistência. Eram rotulados, pejorativamente, como “bispos vermelhos” pela imprensa alinhada ao regime, simplesmente por defenderem uma Igreja voltada para a promoção humana. O sociólogo Gilberto Freyre chegou a criticar Dom Hélder, acusando-o de fazer “política, não apostolado”. Para boa parte da elite conservadora, o envolvimento de padres e bispos com movimentos sociais era visto como uma afronta à ordem imposta pelo regime.
Em 1966, o “Manifesto dos Bispos”, também conhecido como “Documento de Itaici”, divulgado durante o Encontro Regional da CNBB em Pernambuco, reforçava essa postura engajada. O documento convocava trabalhadores rurais e urbanos a se organizarem em defesa da justiça social. Nele, lia-se: “Não pode haver desenvolvimento onde não se coloca o homem em primeiro lugar.” Denunciava a repressão, a censura, a tortura e a falta de liberdade de expressão, defendendo a democracia, a justiça social e o respeito aos direitos humanos. A reação dos militares foi imediata: proibiram sua circulação e ameaçaram prender Dom Hélder.
A partir daí, a Igreja progressista tornou-se um dos raros espaços de resistência à repressão, oferecendo um refúgio para aqueles considerados “inimigos” pela ditadura militar. Realizou debates públicos, manifestações e campanhas, defendendo projetos de lei e políticas públicas que promovessem a justiça social Padres, bispos, freiras e leigos foram perseguidos, presos, torturados e até assassinados por sua atuação junto aos pobres e oprimidos. Esse novo espírito encontrou inspiração nas diretrizes do Concílio Vaticano II, convocado pelo Papa João XXIII, que propunha uma Igreja mais próxima do povo. A Ação Católica e a Juventude Católica ganharam destaque, fortalecendo essa visão social do clero.
No entanto, o clero politizado não passou incólume por essas mudanças. Gerou tensões internas dentro da própria Igreja, evidenciando o conflito entre o conservadorismo e a nova atuação pastoral voltada à transformação social.
O envolvimento político da Igreja Católica durante a ditadura não apenas marcou um capítulo relevante da história eclesiástica no Brasil, mas também deixou um legado que ecoa até hoje. A politização do clero é, ainda hoje, um tema sensível e atual. Pode representar um instrumento de transformação social — mas também levanta desafios e dilemas que continuam a provocar debates dentro e fora dos altares.
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