Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Entretenimento

O Caminhão, o Tubarão e a Van


28/04/2020

Cartaz do filme "Sorry, we missed you" (Você não estava aqui)

Estamos todos abandonados! Pelo Estado, pela sociedade, pela família, pelos amigos, e por nós mesmos!

Lembro que, quando assisti o filme Encurralado de Spielberg, no Cine Municipal, fiquei sem dormir. Em choque com aquele monstro original, representando todos os outros monstros, das florestas, mas principalmente do asfalto. Não podia ver um caminhão na estrada que tremia nas bases. Depois foi a vez de Tubarão, também de Spielberg. Nossos mares calmos de águas mornas ficaram em quarentena. E aquela música – Tum Tum Tum! Soando nos meus ouvidos  da menina jovem e o mar, jamais reconheceu qualquer mar como calmo e convidativo.

Os monstros mudaram. As estradas e os mares também. Até mesmo os asfaltos tem outro perfil. O grande monstro do século 21, já passou pelo Big Brother de Orwell, mas agora responde pelo nome de saúde, no filme Eu, Daniel Blake e agora Sorry, we missed you, ambos do diretor Inglês Ken Loach, que sempre teve o olhar astuto e implacável para com o seu país e para o mundo em geral, que massacra o cidadão trabalhador  e a precarização do trabalho. A corrosão do sistema capitalista poderia ser o monstro que nos come as entranhas. Literalmente.

O filme, Sorry , we missed you, (em cartaz no Banguê, pouco antes da Pandemia) em português ganhou  a tradução, Você não estava aqui, que não sei se seria a minha. Talvez dissesse, “Desculpa, esquecemos de você”! Seria literal, mas talvez desse a ideia  de que realmente perdemos cada um dos personagens do filme: Rick, te perdemos! Você foi ingênuo em acreditar que  terias condição de ascender, liquidar dívidas, comprar casa própria e prover sua família, principalmente de presença e amor. Abby, te perdemos, pois, apesar da sua calma plácida (as mulheres tem sempre que segurar o estopim das crises familiares, principalmente pela harmonia dos filhos!). Te perdemos Abby! Cuidadora exemplar. Mas de ônibus em ônibus , impossível dar conta de tantos idosos solitários, da família esfacelada, do filho em crise de abstinência amorosa, da filha que a tudo vê e a tudo sente, mas ela só tem 13 anos! E cuidar dela mesma – seu único momento todo seu,  é quando uma das idosas de quem cuida, gosta de lhe pentear os cabelos. Te perdemos Lisa! Você é adorável. Linda, meiga, obediente, quieta, solidária, carinhosa, menina que, até de auxiliar do pai no trabalho, um dia vai. E ainda deixa bilhete irônico na caixa de correio de um dos clientes. Coisa que  o próprio será repreendido. E te perdemos Sebastien! Com sua voz grave e com o sotaque inigualável do norte da Inglaterra – Newcastle, reage a tudo com arte e grafite; quer ultrapassar os limites todos, não importando nem mesmo as pequenas contravenções. Faltar aula, mentir, pequenos furtos, acusar, tudo vale nesse mar de impossibilidades.

Rick já fez de um tudo na vida da construção civil: Cimentou, ergueu, parafusou, pintou,……e todos os outros verbos de alguém especializado na sua área. Agora? Com a terceirização e  ubberização do trabalho, e depois da crise econômica de 2008, toda a energia trabalhista de um ser humano decente se desmancha no ar. Escravo seremos todos! E ingênuos de achar que teremos espaço nesse mundo cão que é o mundo do trabalho e  dos que lutam por uma  sobrevivência sólida e apaziguada. Com contas pagas , direito ao lazer, tempo para a família, feriados e almoços do domingo. Na família de Rick, uma comida indiana delivery é a grande felicidade da noite do sábado, sem embalos nenhum.  As famílias não podem prestar mais socorro, e cada uma também está no seu mundo do, salvem-se quem puder.

Nos filmes de Loach, não temos final feliz na  tragédia da vida humana.

Que segue…

Ana Adelaide Peixoto

*Artigo publicado também em A UNIÃO.


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