Nadja Claudino

Mestre em História e Regionalidades

Nordeste

O Brasil vai


16/04/2024

 

“Delmiro deu a ideia
Apolônio aproveitou
Getúlio fez o decreto
E Dutra realizou”

O Delmiro da letra da música Paulo Afonso, composta por Zé Dantas e interpretada por Luiz Gonzaga, é o cearense nascido no Ipu, Delmiro Gouveia, homem que em um tempo onde tudo precisava ser feito, ousou construir a Usina de Angiquinhos, a segunda usina hidrelétrica do Brasil e a primeira do Nordeste. Órfão aos quatro anos, seu pai combateu e sucumbiu na Guerra do Paraguai, o menino desde cedo teve uma vida agitada com diversas mudanças de endereço passando por várias cidades de Pernambuco, até chegar a Alagoas, no vilarejo de Pedra, hoje uma cidade batizada com seu nome.

Os estudiosos que se debruçam sobre o sertão nordestino, trabalhando com os temas cangaço, coronelismo e messianismo se interrogam sobre os feitos e o legado desse homem, que de origem modesta encontrou no Recife, a terceira maior cidade do Brasil, no fim do século XIX, as possibilidades oferecidas por uma metrópole ligada ao mundo. Delmiro com extraordinário tino comercial se transformou no rei das peles, por vender couro por todo interior de Pernambuco. Com o advento da República, passou a ser um especulador, navegando bem por crises econômicas e fortalecendo seu capital financeiro e social. Fazendo conexões com países de industrialização avançada através de viagens para os Estados Unidos e a Europa, exportando peles e importando produtos e ideias.

Tive a oportunidade de ver de perto os vestígios da passagem de Delmiro Gouveia pelo sertão do nordeste e de como usou a força das cachoeiras de Paulo Afonso, ao conhecer as hoje modestas instalações de sua Angiquinhos de 150 HP, que abastecia a vila operária e sua fábrica de linhas e a cidade de Pedra. Falo em modestas instalações se comparamos com as hidrelétricas atuais, mas formidáveis pensando que tem sua casa de máquinas encravada nas pedras do São Francisco, um testemunho da coragem dos anônimos que a construíram e do homem que a sonhou e realizou.

Delmiro era contraditório como seu próprio tempo; ora lutou contra as oligarquias locais, o que o fez sair de Pernambuco; ora se aliou a elas, quando já em Alagoas em 1914 montou a Companhia Agro Fabril Mercantil para produzir linhas, atendendo a demanda brasileira por esse material que ficava cada vez mais difícil de vir da Europa, que já enfrentava o início da Primeira Guerra Mundial. Com essa iniciativa trouxe ao sertão dos primórdios do século XX, industrialização, salários, moradia, educação e saúde para os seus trabalhadores. Dentro de uma estrutura ainda paternalista, mas que sem dúvida era um advento da modernidade e civilização. Lutou contra o monopólio inglês na fabricação de linhas, quando não aceitou vender sua indústria para um grupo escocês.

Aos 54 anos de idade foi assassinado por mão pagas, não se sabe se pelo capital estrangeiro, ou por algum coronel descontente com os métodos de trabalho que privilegiavam as relações mais humanitárias e igualitárias num país acostumado ainda com a servidão. Com sua morte sua indústria de linhas foi vendida para os escoceses que a fecharam e jogaram seus maquinários dentro do Rio São Francisco, nas mesmas águas que forneceram energia para o funcionamento da fábrica e que movimentam hoje a Usina de Paulo Afonso. Delmiro Gouveia não ouviu na voz de Luiz Gonzaga a promessa de algo que ele já intuía: “Ouço a usina feliz mensageira dizendo na força da cachoeira/ O Brasil vai (O Brasil vai)”.


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