Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

JOSÉ CALDAS: Um Homem Bom


17/08/2010

Foto: autor desconhecido.

 Para Margarida, Glauce e Mary Caldas

Nem me lembro da primeira vez que o vi. Foi há tanto tempo, menina ainda, amiga de Glauce (Lala Caldas) sua filha caçula, nos tempos de Lourdinas, adorava freqüentar sua casa na rua João Amorim, no centro, onde comecei a perambular pelo “Beco”.

Era muito bem acolhida por Caldas e Margarida, sua esposa, estilista e mulher dos cortes e das altas costuras paraibanas. Tinha também Mary Caldas, a irmã mais velha (só um pouquinho!), que era nosso modelo de charme e elegância.

Sempre fui bandoleira e dormir fora era o programa de Saturday´s Night!; e na casa de Glauce, para pegar carona com Laureano ou Paulo Neiva para irmos ao Jantar Dançante, era a glória total. Sentia-me moça completa. Pronta para o mundo. O Beco, como chamávamos esse recanto de rua, era o supra sumo da felicidade infanto-juvenil. Muitos jovens nas redondezas, campeonato de volley, disse-me-disse das paqueras, a casa também de Aldenor Quinderé para pularmos o muro, e amigas queridas também pela vizinhança: Dodora Diniz, Joana Emília, Erise, a musa linda do pedaço.

Pois essa semana, Sr. Caldas ou Caldinhas, como chamávamos carinhosamente no Colégio, partiu para as estrelas. E enquanto fazíamos a sua despedida, fiquei a passar o filme da minha vida também. Aquela estória de que, à cada morte, choramos também um pouco os nossos mortos, e à nossa própria finitude. Caldinhas, participou de um período bacana do meu tempo de menina e moça, e que como tudo na vida, teve seu fim. Foi um desses homens que não existe mais. Altruísta, viveu toda uma vida dedicado à mulher, filhas e depois os netos. Só o via com o pacote de pão embaixo do braço. Era um exímio provedor, e sempre tão presente na vida das filhas, e por tabela, na vida das amigas das filhas. Eu fui uma dessas felizardas. Isso já faz anos, e hoje vivo até longe desse tempo, mas nesse dia de Adeus, não pude deixar de re-viver tudo isso. E re-encontrando as pessoas daquele tempo, o tempo fez-se presente .

Sr. Caldas, era alfaiate; uma arte quase extinta, assim como homens da sua estirpe. Ser alfaiate, para os mais novos, consiste na “criação de roupas masculinas (terno, costume, calça, colete, etc.) de forma artesanal e sob medida, ou seja, exclusivamente de acordo com as medidas e preferências de cada pessoa, sem o uso padronizado de numeração preexistente”, dia o verbete no Google. Acho que pessoas com esse dom, olham para os indivíduos como se fossem únicos. E para cada um, uma medida e um gesto. E tais medidas exigem precisão e cuidado. Cuidado que tanto nas roupas como para com as pessoas, não lhe faltaram.

Uma vez, tive o privilégio de, quando fomos, uma turma de amigas para São Paulo, em 1980, cheguei lá no seu ateliê do Centro e pedi: Caldas, quero um paletó de homem. E entreguei o linho caqui e tirei as medidas. E assim embarquei para Sampa, totalmente andrógina…., quando já gostava da moda de alfaiataria, e misturar o feminino com masculino, enquanto as moçoilas da época, estavam a rodar as saias e salto alto. Jamais tive um paletó tão chique, tão bem cortado, por um alfaiate de verdade.

Caldas tinha aquele rosto de calma e com essa calma cuidava. Cuidou do gosto e da elegância de tanta gente. Tão difícil ver um homem assim tão cuidadoso, ou cuidadouro, se é que posso inventar o termo. Pois essa, sempre é uma qualidade tão atribuída às mulheres. Quando sua filha Glauce separou-se, sim, porque na década de 80 todas nos separamos; eu fui a primeira à transgredir a regra dos casamentos felizes para sempre. Ele tão preocupado, alugou casa, comprou carro, fez feira e arrumou uma diarista para Glauce. “Tudo pronto minha filha, venha começar de novo!” Parecia dizer. E o ex-marido, Guilherme Faulhaber, meu amigo pessoal até hoje e ex-colega de trabalho por 12 anos na Assessoria Internacional da UFPB, levou-o para casa, e o acolheu por 6 meses, enquanto Gui tomava prumo, rumo e decisão do que fazer da vida. Agora me digam, mesmo hoje, depois de mais de 30 anos, qual o pai de filha que faz isso? Só Caldas, com sua generosidade, seu compartilhar, e sua expertise no talhar os seus ternos e ternas atitudes.

Nessa mesma época, com trilha sonora de Bob Dylan, George Benson, e Cazuza, descobrimos Baía Formosa e as loucuras do tomar umas, e fazer e ouvir um som – A Cor do Som!. Caldas e Margarida, prontamente construíram uma bela casinha à beira mar, para que as filhas, e a toda a reca…, pudessem usufruir daquele paraíso de natureza e das loucuras dos anos 80. Foi uma década da minha Saint-Tropez particular, e eu? Me sentindo a própria Brigitte Bardot, com direito até a falar francês!

Acho que Caldas nunca tomou uma cerveja com amigos, nunca foi ao futebol, nunca chegou tarde sem avisar, nunca deixou a família esperando para almoço, e nunca deve de ter desapontado ninguém. Para alguns pode parecer heresia. Para ele? O normal de todo dia. O seu prazer diário de um tesouro cotidiano. Seus pontos de alfaiataria eram precisos e bem dados. Pontos indissolúveis como laços de afeto e amor. Só sinto não ter mais aquele terno tão bem talhado, pois ao contrário do seu porte esguio durante toda uma vida, eu já ganhei alguns quilinhos e o tal paletó já não dou mais notícias. Por certo passei para frente em algum brechó. Mas se é para falar de eterno retorno, a minha alegria em vesti-lo não sairá jamais das minhas doces lembranças.

Ultimamente, quando passava em frente ao prédio São Marcos, um dos primeiros e únicos da orla por muitos anos, sempre o via sentado na calçada, com Margarida e a cunhada Renata Mendonça (outra estrela recente e luminosa). Um trio ternura digamos assim, pessoas que sentavam e conversavam ainda, nesse mundo tão brutal , tão individualista, e tão trancafiado dentro dos seus mundos. Já não fazia mais ternos é bem verdade, mas de tanto fazê-los, incorporou a palavra do objeto no sujeito.

Jamais conheci homem tão bom! E terno!

Com minhas saudades,

Ana Adelaide Peixoto – 15 de agosto, 2010


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