Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

In-Tocáveis


05/09/2012

Foto: autor desconhecido.

 

Minha mãe achava estudo
A coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento…..

(Ensinamento – Adélia Prado)

O poema de Adélia Prado nos faz um alerta da supremacia do amor sobre a cultura. O filme de Woody Allen, Tudo pode dar Certo, também aborda, de forma irônica, o descompasso entre os binômios conhecimento/experiência x ignorância/inocência. Um velho rabugento, Boris (Larry David), que se considera ser o único capaz de compreender a insignificância das aspirações humanas e o caos do universo, até que uma moça de nome Melodie (Evan Rachel Wood), frágil, e ignorante, se instala a contragosto no seu apartamento, começando então uma relação de trocas inconscientes, amores em tempos distintos, e questionamentos do que seja cultura e a falta dela.

Não pude deixar de associar tais temas com outros textos já citados por mim em outras crônicas como: The Nightingale and The Rose, de Oscar Wilde, e o filme Educating Rita (O Despertar de Rita), ambos questionando o papel da filosofia, da arte, do estudo, da razão x emoção, do instinto x intelecto. E como não lembrar de William Blake e as Songs of Innocence e Songs of Experience? Temas interessantíssimos e inesgotáveis. Que o diga também D. H. Lawrence.

Toda essa introdução para falar do filme Cult francês, o delicioso – Intocáveis (2011, de Olivier Nakache e Eric Toledano), exibido no Festival Varilux, festival esse que só reforçou a receptividade do público Pessoensse a bons filmes, e um dejá vù ao Cinema de Arte do Cine Municipal.

E eu cito João Batista de Brito para fazer o resumo do filme: “Vivendo na periferia de Paris, filho adotivo de uma família pobre, o jovem afro-descendente Driss vira, meio por acaso, acompanhante desse senhor rico, Philippe, que, em sua luxuosa mansão, vive entre cadeiras de rodas e camas, e cujo corpo só tem sensibilidade do pescoço para cima. Ganhando o emprego para candidatos competentes, ele mesmo inapto e truculento, Driss aproveita a oportunidade rara para usufruir de um luxo que nunca conhecera.”

João também escolhe ler o filme, sob a perspectiva do culto x inculto. E como outras críticas publicadas em Veja, Época, também faz alusão à representação da França atual, tão reverenciada por sua cultura e arte, mas também paralisada, versus os países periféricos, no caso a África, inculta, selvagem, primitiva até, mas em movimento, como outros lugares igualmente Off Europa.

Depois de assistir ao filme, fiz um exercício de brainstorm, coisa que gosto de fazer, para acompanhar meu olhar imagético, e várias ideias me brotavam às turras: Inversão de papéis; des-construção, ou pelo menos questionamento sobre o que é erudito e para que nos serve a erudição em momentos limites; o que é uma obra de arte?; o valor dessa obra; a questão do olhar; qual o preço de uma abstração, se compararmos ao preço de uma faxina?; Artes plásticas ou Arte Cantada – uma ópera por exemplo?; o que tem Picasso, Salvador Dali, Rimbaud, e o que esse Senhores nos embala nessa vida afora? E até onde podemos cavar, quando nosso corpo já não dita as regras. E conclui novamente que, a arte revela a capacidade de sonhar, da vertigem, e do mergulho. Coisas que também podem ser vividas, talvez e simplesmente, como uma corrida diante do perigo, no escalar de uma montanha, no vento na cara ou no suor frio de um encontro amoroso.

V. Woolf no seu ensaio Modern Fiction, fala de que não existe método para escrever. Sem regras, sem modelos, sem linearidades – eis a questão! Acho que o texto de Woolf também se aplica à vida. Não temos um método para ser feliz! Menos ainda para virarmos artista. Ou para pintarmos uma mancha de tinta, e com nossos pingos, acertarmos nos Is.

Intocáveis também pergunta, o que é ser Francês? Morar na França? Ser Rico? Ser culto? Ou o que é ser um Senegalês? Ser Negro? Ser pobre? Ser imigrante no país ocidental, mais intelectual, mais Egualité, Fraternité, e Liberté? O que é ser dissonante? E o que é o luxo? Ter acesso a ele? Qual o impacto de vivermos num castelo? E de termos um banheiro só nosso, com uma banheira cheia de sais e sonhos? O que ser entre tantos entre-lugares?

Em situação limite, outros códigos imperam. Um negão, sua espontaneidade, sua dança, sua velocidade, seu sexo, sua rebeldia, seus ímpetos, sua beleza, sua alegria na vida, são as doses certas para a restauração de um paralítico. Em certas horas, de nada nos adianta o pragmatismo, e o off job, a off rotina, ou o off tudo, tem sim, seus preços impensáveis.

O outro, a alteridade, e a abertura para aceitar certos amalgamas, é que vão destoar do lugar comum. Infelizmente é o extra-ordinário que fará a festa, seja dando chutes no carro mal estacionado; seja com pegadas fora do lugar; seja roubando um ovo-obra-de-arte, para mais tarde devolvê-lo ao seu lugar de costume e carinho; seja piscando o olho para a dama ruiva; seja querendo dirigir o carrão preto imaculado em lugar de uma van adaptada. Não adaptar-se, mesmo em situações urgentes, faz parte da sobrevivência, e é disso que Driss, com seu nome sibilante, vai fazer do cotidiano bege de Phillipe, cetim macio, ou encrespado! O amor é tudo, Adélia sabiamente falou. E até conseguir o amor anônimo de Phillipe, Driss atirou a flecha do cupido. Yes!

E a troca existe? Sim, certainment!. Driss, quando demitido, já entende de boas maneiras, quando novamente tira o carro do estacionamento proibido, dessa vez dizendo: “Si vouz plait”! Como também entende que um pingo de tinta pode sim ter suas nuances e seus mistérios Reconhece Salvador Dali, numa tela na parede, impressionando a funcionária. Assim como também a personagem de Woody Allen, protagoniza uma das cenas hilárias, quando se dana a filosofar, com termos nunca antes imaginado por seu mentor, enquanto ele, inversamente des-aprendido de tudo, começa a desfilar pérolas de um ignorante mortal. Inverter é divertido e real. Será que, por osmose também des-aprendemos e re-aprendemos?

Intocáveis? Título irônico pois é justamente do toque afetivo; dos toques corporais; toques existências, e das trocas que fazemos na vida, que conseguimos ir moldando nossas alegrias, tristezas, conquistas, medos, e tantas outras óperas da vida. Esses dois personagens, aparentemente intocáveis pelos seus lugares no mundo, na sociedade e nas suas próprias paralisias, fazem da alegria do joieux de vivre, uma razão concreta da busca da alegria, e fazem sim, um contato epifânico e transcendental.

Li recentemente que um dos serviços mais promissores da atualidade é o de Cuidador. Palavra nova, típico exemplo de que o cotidiano forma os vocábulos. População vivendo mais , mais doenças, mais exigências, e novas ofertas. E todos nós, com algum idoso pelas vizinhanças, bem sabemos o quão difícil é cuidar. Há de se ter paciência, destreza, habilidade, alegria, olhar atento, mas sem as precisões cirúrgicas e nem a frieza higiênica que a profissão exige. Há que se ter amor. E como se dar amor quando não se tem, mas se tem a precisão do serviço? Nada feito. Para esse trabalho, como tão bem fez Phillipe, há de se ter algo mais, o que Driss tinha de sobra: um desajeito na vida. Uma ousadia de ver o doente, sem a compaixão cruel de nós mortais para com os desvalidos. Há de se jogar nas velocidades, nas danças, e mergulhar fundo numa banheira nem sempre de luxo. Sem método, sem regras, perambulando por aí…

E que delícia saber que toda essa estória foi real. Que existem Phillipes e Drisses em algum lugar divino do Marrocos, por entre desertos, véus, e tâmaras, o amor é possível sim, sob um céu que nos protege de verdade. Inshalá eu pudesse, nós pudéssemos, ter o nosso Driss de cada dia…

E porque Setembro chegou, que venha a primavera!

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa 2 de setembro, 2012


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