Geral
“Força estranha”
10/03/2014
Foto: autor desconhecido.
Caetano Veloso não é um homem voltado para as doutrinas religiosas. Por isso são várias as interpretações do que queria dizer quando compôs “Força estranha”, em 1981. Vou me atrever a fazer minha análise, sem me deixar influenciar por outras interpretações das mensagens colocadas na letra da música. Entendo que a força estranha tem a ver com a presença divina, um ser superior que conduz pensamentos e ações.
“Eu vi um menino correndo/eu vi o tempo brincando ao redor/do caminho daquele menino”. A visão da criança correndo relembra a história do “menino Jesus” brincando, enquanto o tempo corre a espera de que se torne adulto e se transforme na personalidade mais marcante da humanidade. O “seu caminho” passa a ser o rumo de todos os que nos últimos dois mil anos professam seus ensinamentos. Ele, por ser “filho de Deus” se confunde com o próprio tempo.
“Eu pus os pés no riacho/e acho que nunca os tirei”. O riacho é um local onde as águas são correntes, elas passam, nunca permanecem no mesmo lugar. E quando você põe os pés nele vai perceber que elas passam os banhando. Assim é a vida, ela passa por você sempre com novos acontecimentos, novas concepções, novas formas de entender a razão de sua própria existência. Então o “eu lírico” diz que “acha que nunca tirou os pés do riacho”, procurando afirmar que decidiu viver a vida com todas as suas mutações, transformações, avanços.
“O sol ainda brilha na estrada que nunca passei”. Ele sabe que no caminho da vida vai encontrar luz, o sol, brilhando em lugares que nunca passou. O futuro será tão brilhante, quanto o presente, e ele segue o seu caminho, na certeza de que “a luz” permanecerá clareando seus próximos passos.
“Eu vi a mulher preparando outra pessoa/o tempo parou para eu olhar aquela barriga”. Na história universal a humanidade se reproduz, e no ventre materno germina a semente plantada para que tenha continuidade. O tempo pára o suficiente para ver a barriga se avolumando na antecipação do nascimento de mais um ser que sucederá gerações. É o ciclo natural da vida.
“A vida é amiga da arte/ é a parte que o sol me ensinou/o sol que atravessa essa estrada que nunca passou”. A própria vida nos orienta na condução do percurso da estrada de nossa existência. A arte pode ser um dom, mas ela é aprendida com a experiência, e o “sol” representando o brilhar diário da nossa vida, nos faz conhecer as trilhas, as veredas, as oportunidades e as dificuldades que nos são oferecidas a cada instante. Assim criamos condições de enfrentar o desconhecido.
“Por isso uma força me leva a cantar/por isso essa força estranha./Por isso é que eu canto, não posso parar/por isso essa voz tamanha”. Intui, ao constatar a beleza da vida, que tudo isso tem a ver com a providência divina, e então se sente motivado a cantar impulsionado por uma força estranha. E quer gritar sem cansar essa prova de que Deus existe, com “uma voz tamanha”, numa altura que possam todos ouvir.
“Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista/o tempo não pára e, no entanto, ele nunca envelhece”. O artista aqui é o próprio homem que aprendeu a arte de viver. O envelhecimento não está na ordem cronológica, mas na cabeça. Se o tempo não pára, ele vai se adequando à cada época alimentado pela alegria de viver.
“Aquele que conhece o jogo, do fogo, das coisas que são/É o sol, é a estrada, é o tempo, é o pé e é o chão”. Tudo termina sendo um jogo e você precisa conhecer as regras para vencer. O “fogo das coisas”, os perigos de se queimar, o risco de se machucar com o fogo ignorado. Mas aparece o sol iluminando o caminho a percorrer, porque a estrada é o tempo. Mas necessário se faz ter sempre “o pé no chão”, conhecer a realidade das coisas.
“Eu vi muitos homens brigando/ouvi seus gritos/estive no fundo de cada vontade encoberta/e a coisa mais certa de todas as coisas”. Embora o sentimento do bem pregue a paz, os homens continuam brigando entre si, gritando suas insatisfações e protestos. E na observação desse comportamento, mesmo lamentando, conseguimos ver que por trás das guerras existe sempre um motivo de ambição, ganância, conquista de poder, desprezando “as coisas mais certas” que são o espírito de fraternidade e de promoção da justiça social.
“Não vale um caminho sob o sol/e o sol sobre a estrada, é o sol sobre a estrada, é o sol”. A vida é a estrada, e o sol é a orientação que vem dos céus, a mão de Deus decidindo nosso destino. É o sol, enquanto luz que clareia nossa estrada, que devemos observar, admirar e reverenciar, porque ele é a expressão do divino.
• Integra a série de crônicas “PENSANDO ATRAVÉS DA MÚSICA”.
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