Geral
“Folhetim”
05/12/2013
Foto: autor desconhecido.
Chico Buarque em muitas de suas canções se mostra um profundo conhecedor da alma feminina. Em “Folhetim”, música composta em 1977 para a sua peça de teatro “Ópera do Malandro”, baseada na “Ópera dos Três Vinténs”, de Kurt Weil e Bertolt Brecht, e na “Ópera dos Mendigos”, de 1728 de John Gay, ele traz como personagem da letra uma mulher que se dispõe satisfazer os prazeres masculinos em troca de favores ou dinheiro.
“Se acaso me quiseres/Sou dessas mulheres/Que só dizem sim/Por uma coisa à toa/Uma noitada boa/Um cinema, um botequim”. A meu ver não se trata de uma profissional do sexo, do contrário não se contentaria em fazer companhia num cinema ou num bar. Na verdade é uma mulher independente, que não se apega emocionalmente. Não diz sim exclusivamente para os prazeres carnais. Aceita compartilhar a satisfação de assistir um filme, ser parceira de uma noitada de diversão.
“E, se tiveres renda/Aceito uma prenda/Qualquer coisa assim/Como uma pedra falsa/Um sonho de valsa/Ou um corte de cetim”. Mais uma vez fica demonstrado que ali não fala uma prostituta. Fala uma mulher que quer viver os prazeres da vida, sem preconceitos, sem medo de ser censurada pela iniciativa de se oferecer, sem definição do preço de sua parceria. Não cobra a contrapartida material, mas também, se for dada de boa vontade não recusa “uma prenda, qualquer coisa a toa”. Um presente, seja ele qual for, sempre é bem recebido. Não está se vendendo, está se dispondo a receber um mimo, sem estabelecer o quanto deva valer.
“E eu te farei as vontades/Direi meias verdades/Sempre à meia luz/E te farei, vaidoso, supor/Que és o maior e que me possuis”. Afirma que o encontro não terá uma conotação de romance. É uma união casual, sem cobranças futuras, sem manifestações de compromissos no amanhã. Mas saberá ser íntima na forma de atender “suas vontades”, nem sempre falando a verdade, quando fingir faz parte do “script” adequado para que o momento seja de prazer. Claro que em se tratando de um encontro efêmero, melhor que seja um tanto escondido, “à meia luz”, dando assim um toque de segredo que se torna excitante, numa espécie de quebra dos padrões da normalidade.
“Mas na manhã seguinte/Não conta até vinte/Te afasta de mim/Pois já não vales nada/és página virada/Descartada do meu folhetim”. Viver intensamente o espaço de tempo em que estiverem juntos. Afinal de contas esse era seu único acordo firmado. No dia seguinte ao acordar, que ele não se iluda, foi bom enquanto durou. Tudo fica no pretérito, sem lembranças, sem marcas que possam repercutir na sua vida. Porque ela tem plena consciência do que está fazendo e não quer tornar a “noitada” numa história de amor, mas numa conjunção de deleite. “Página virada”, a vida continua, e o dia seguinte lhe reserva outras formas de prazer, outros companheiros na “noitada”. Não quer se prender a ninguém e espera que essa compreensão seja recíproca. A cada dia uma folha descartada no seu folhetim e assim toca a vida.
• Integra a série de crônicas “PENSANDO ATRAVÉS DA MÚSICA”.
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