Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

Escrita Feminina – Por que nos perguntam se existimos?


05/10/2016

Foto: autor desconhecido.

…Sentei-me à beira de um rio e comecei a pensar sobre o sentido dessas palavras….As Mulheres e A Ficção” (Virginia Woolf em Um Teto todo Seu)

O último Suplemento Correio das Artes, ( A União) de setembro 2016, traz como sua matéria de capa – Literatura Feminina, e uma série de perguntas, respondidas por algumas escritoras/poetizas paraibanas, da qual muito alegre, fiz parte.

Dentre as questões sobre dificuldades, percursos, avaliações, assédios, a pergunta central é sempre a mesma: Existe Literatura Feminina?
Com certeza, apesar do Suplemento ter conseguido fazer um debate interessante (Linaldo Guedes, William Costa), essa pergunta não se responde em uma linha de escrita. É uma pergunta Histórica e Política. Tem uma trajetória que a Academia vem estudando (principalmente as mulheres) desde lá na década de 70/80. E desde então, muito se tem conhecido, se transformado, e claro, as ideias tomaram também outros/novos rumos.

Quando se fala em Literatura Feminina, não se pode desvincular o conceito da trajetória das mulheres e do feminismo. É primeiramente uma questão política! Dialoga com os séculos de exclusão, escravidão e opressão. E já que estamos em tempos pós eleições, basta conferir o filme As Sufragistas. Mulher era vista como alguém que não tinha cérebro! Mulher não podia pensar. Só lavar roupa, enxaguar as sujeiras do trabalho masculino para com os cavalos e o mundo público. Outro exemplo, o filme Em nome de Deus, mostra que até a década de 90, as lavanderias transvestidas na Irlanda, serviam de algozes para as mulheres que se rebelassem com suas vidas sexuais mais livres, se extenuavam nas famosas lavanderias – Asilos de Madalena.

As mulheres sempre escreveram, sempre pintaram, sempre quiseram se expressar artisticamente e participar da vida em plenitude. Quanto à literatura, seus escritos perderam-se no vento ou nas gavetas lacradas. Foram sim, responsáveis por trazer à tona os assuntos que lhes cabiam , ou seja, a sala de jantar, aonde eram confinadas. E sendo assim, não podiam falar dos mares nunca dantes navegados, como o fizeram Hemingway – O Homem e o Mar; Joseph Conrad – Coração das Trevas, ou ainda Melville – Moby Dick! E só para citar esses três, a aventura de caçar, pescar ou se aventurar mar e floresta adentro na vida real, lhes autorizava a ser o Eu que vivenciavam. Com baleias, rifles, e quaisquer outros mares .

Já a escritora inglesa, Jane Austen só podia falar de casamento! E dentro desse universo aparentemente restrito, seu olhar transcendia à janela. Era do lugar da exclusão, do cuidar dos velhos/enfermos e/ou das crianças, que as mulheres se arvoravam a falar camufladamente da sociedade Inglesa da sua época. Austen, magistralmente, se utilizava da ironia para adentrar espaços que não lhes eram permitidos, e pelos caminhos das razões, sensibilidades, orgulhos e preconceitos , falou do que quis. Mas era uma expertise da linguagem e soube muito bem colocar suas batatas em primeiro plano.

As mulheres seguiram sim, escrevendo sobre o que conheciam. E se utilizavam de estratégias narrativas. Diários, cartas, confissões, assuntos das suas vidas diárias. Depois, isso foi avançando, passando pela rebeldia, panfletos, procurando uma voz toda sua, seu tom, o seu foco, narrador, público, etc. Quis ser poeta! Poetiza lhe diminuía, porque? Por que o nome já vinha carregado de significado que lhe restringia. Queria ser abrangente. Queria ser como os homens. Viu que outras armadilhas, literárias inclusive, lhes aprisionavam igualmente. Voltaram a ser poetiza, agora com o feminino autorizado e reiterado.

É muito difícil para as gerações mais novas, por vezes entenderem/e ou aceitarem todo esse percurso. e/ou outras que rechaçam o Feminismo, achando que tudo lhes fora dado de graça. Não foi! Uma imensa luta centenária acompanhou à vida das mulheres nos espaços privados e públicos. E, se hoje escrevemos, publicamos, e podemos sim, incorporar outros assuntos, outros vieses às nossas falas, muitas nos antecederam. Desde Safo, poetisa grega que viveu antes da Era Cristã, à antológica Rachel de Queiroz, representante singular de um discurso “feminino”, menos marcado por traços reduplicadores e/ou reivindicatórios, como bem disse a pesquisadora Maria Helena Mendonça no seu texto “ A literatura de autoria feminina: (re)cortes de uma trajetória”.

Quando Mary Woolstonecraft – tradutora, jornalista e professora Inglesa, escreve o primeiro manifesto em defesa da mulher, 1972, The vindication of the women rights, com certeza terá o ponto de vista da mulher. Analfabeta até os 16 anos, com esse libelo feminista, a mãe de Mary Shelley (Frankestein), sabia onde a sua existência como sujeito doía. Ora, por que um homem iria escrever sobre esses direitos se já os tinha todos?

No seu ensaio “Women and Fiction”, Virginia Woolf afirmava sobre a invisibilidade feminina: “Sobre nossos pais sabemos sempre um fato, algumas distinções. Eles foram soldados ou marinheiros/navegadores. Eles trabalhavam em escritórios ou fizeram alguma lei. Mas sobre nossas mães, nossas avós, nossas bisavós, o que resta? Nada. Somente uma tradição. Uma foi bonita, outra tinha o cabelo vermelho, uma outra foi beijada pela rainha.”

A professora e pesquisadora das mulheres escritoras, Luzilá Gonçalves afirma: “Existe um eu que se investe no texto, um eu que se sabe mulher, se sente mulher, se relaciona com os outros como uma mulher, é vista pelos outros como mulher. A linguística diz que as condições de enunciação sob as quais uma obra foi escrita deixam marcas no enunciado, indicam a relação íntima, intuitiva, do seu produtor consigo mesmo e com sua própria cultura, com a organização social em que está inscrito. Mas a leitura do texto literário sempre será a leitura de uma consciência – no caso, uma consciência feminina. O sujeito que fala, como o sujeito que escreve, sempre busca através do seu modo de se expressar, a construção de sua subjetividade. A escrita serve, pois, a um individuo, para se dizer. A escrita é um momento de busca. A escrita literária é ao mesmo tempo, uma aventura individual e política.”

A professora e pesquisadora também sobre questões de autoria feminina, Rita Schmidt, também argumenta que: “A escrita feminina aparece pois para valorizar uma linguagem que se oporia à política falocêntrica de representação. Escrita essa que, no século XIX imprimia um sensibilidade contemplativa e exacerbada, sentimentalismo fantasioso, e até mesmo lampejos de histeria. O resgate do termo Feminino, será justamente para re-escreve-lo dentro de uma prática libertadora que objetiva tornar visível a expressão do que foi silenciado e colocado em plano secundário em termos culturais, históricos e políticos. Essa escrita dita feminina inscreve a produção de autoria feminina, escrito do ponto de vista da mulher, em função de representação particularizada e especificada no eixo da diferença. Não se trata portanto de nomear um tipo de escrita a partir dela mesma ou de um texto desvinculado da autoria como se fosse uma entidade ontológica e metafísica”.
Hoje temos conceitos como marginalidade, alteridade e diferença que irão marcar a cena das discussões teóricas, a expressão escrita feminina no final do século XX. Ela será a forma de contestar o caráter misógino ainda presente em critérios de avaliação de textos literários.

A escritora Patrícia Melo, no seu texto – “Um certo entusiasmo pelo Feminismo” diz: eu tinha aversão à ideia de literatura feminina. Hoje, acho a experiência feminina imperativa em nosso texto.

A professora e pesquisadora em Literatura e Linguística(UFSC), Suzana Funck – no seu texto “O que é uma Mulher”, nos esclarece sobre as pesquisas sobre mulher e literatura no Brasil, e claro, depois de algumas décadas, temos panoramas diferentes . E ela argumenta que, em 1985 sabia-se muito bem o que era uma mulher. Éramos nós, acadêmicas, brasileiras, brancas, heterossexuais, e de classe média. Tínhamos lido O Segundo Sexo e A Mística Feminina. Aprendíamos com as teóricas americanas a importância do Resgate e Revisionismo. E muito fizemos com essa Mulher que nos identificávamos. Sisterhood is powerfulness! Funck também se refere à mídia, que sempre soube muito bem o que é uma mulher dentro do determinismo biológico e explora como ninguém as qualidades que emanam diretamente do corpo, para produzir uma visão estável da subjetividade feminina.

Ainda sobre a questão de definição, Funck diz que, uma mulher pode ser definida como um ser humano concreto, entendido culturalmente como feminino em certo momento ou lugar, e que precisa negociar sua experiência dentro de construções discursivas que podem ou não comprometer seu completo desenvolvimento como indivíduo. Não é uma postura necessariamente política. Mas que, no entanto, quando o termo “Mulher” é colocado no binômio “Mulher e Literatura” ou “A Mulher na Literatura”, novas considerações precisam ser feitas. O termo então funciona como uma marca da diferença, implicando uma relação que qualifica ou restringe a literatura, e indicando um recorte específico que determina um posicionamento político, Temos então Duas Mulheres – uma corporificada e fora da literatura, outra dentro, discursivamente imaginada. Essa mulher aí nomeada subsidia uma importante mudança na instituição da literatura, seja pela alteração do cânone, pelo resgate, pela ampliação das possibilidades interpretativas do texto literário.

Essa segunda Mulher estaria nos textos. Pois se somos as histórias que nos contam – tanto no sentido de que elas nos representam quanto no de que são contadas por nós, então as narrativas podem se formar uma fonte de identificação. Essa OUTRA MULHER que habita os textos é um repertório de possibilidades e perigos para o projeto feminista. Pois nenhuma representação é Neutra! E alerta: Mulher e Literatura, tem que ter com uma sólida ancoragem na crítica feminista. Mesmo que continuemos a não saber – O que é uma mulher? Ou o que possa ser literatura!

Hoje, as novas Donas da História tem uma associação de cunho político mais amplo. Literatura ético-existencial, passional, ou seja uma nova ficção feminina onde o amor está condimentado pelo erotismo, sondagens existenciais, ludismo como invenção literária, tudo materializado em experiências formais e estilísticas; fragmentação narrativa, intertextualidade, foco múltiplo, registros labirínticos, explorações dos mitos, e a clara opção pela linguagem do corpo, e a procura dos sentidos das coisas.

Novas safras de autoras na TV e teatro, mudando a dramaturgia dos lugares, Blogs, inserções nas Antologias, o mercado editorial se renova com o olhar feminino, novos dicionários, verbetes significados das palavras, levando em conta a palavra inserida no mundo e contexto histórico da mulher.; linhas de pesquisa, teses e dissertações com as mulheres como temas, aportes, recortes….

Tantas outras pesquisadoras importantes do assunto! inclusive aqui na UFPb como Nadilza Moreira e Liane Schneider, para que sigamos com o assunto que parece ser inesgotável.

Faço uso das palavras de Marina Colasanti, para finalizar esse texto cuja discussão parece continuar em processo:

“O Escritor, como Proteu, é criatura cambiante. Mas Proteu mudava de aparência para iludir os outros e esconder-se, enquanto o escritor busca na metamorfose a essência, para entregar-se. E o que sinto em mim, quando diante do computador busco a essência do homem, a essência profunda do animal e da pedra, que me permitirá escrevê-los, o que sinto, vivido, é o que procuro dentro de mim, através de mim, através da minha própria, mais profunda essência. E que essa essência é, antes de mais nada, uma essência de mulher”

E aí entramos em outro complicador, o que seria uma essência de mulher?Assunto para outros textos!

Consultas:
CERRADOS, Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura. Palavra e Poder: “Representações na literatura de autoria feminina”.
COLASANTI, Marina. “Por que perguntam se existimos?” Em: Entre Resistir e Identificar-se. Peggy Sharpe (Org.) Florianópolis: Editora Mulheres, 1997.
FERREIRA, Luzilá Gonçalves. “Escrita Feminina”. EM: Continente Multicultura. N.48, dez,2004
FUNCK, Susana. “O que é uma mulher?”. EM: Cerrados
MELO, Patrícia. “Um Certo Entusiasmo pelo Feminismo”. Revista Lola
MENDONÇA, Maria Helena. “A Literatura de Autoria Feminina: (re)cortes de uma trajetória.”
SCHMIDT, Rita. “Repensando a cultura, a literatura e o espaço de autoria feminina”.
WOOLF, Virginia. “Mulher e Ficção” e Um teto todo seu.

Ana Adelaide Peixoto – 4 de Outubro, 2016
 


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