Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

De Cartas & Fotos


19/05/2022

Imagem ilustrativa

 

Continuamos a desarrumar o apartamento da minha mãe. Dessa vez foram os armários, pastas, documentos, livros, e o quarto de despejo, não aquele de Carolina de Jesus, mas dos seus próprios “não quero mais”.

Primeiro ficamos empancadas rodando feito perus, um pra lá e pra cá, que nem bolero era. Um mal jeito, uma des-acomodação, que nos intrigava. Um dia, não conseguimos fazer nada. Aquele lugar, antes tão cheio de vida, e até mesmo autoridade, mamãe com aquele olho vivo de dona e de –  “aqui quem manda sou eu!”, sedia espaço para uma ruína só. Não era uma ruína de guerra. Mas existem outros tipos de guerras e destruições. E essa era o de encerrar a vida de alguém. Li em algum lugar que, alguém morre, mas são os vivos que apagam a luz; que fecham a casa do morto; põe fim. O final de tudo. E isso é esquisito. E ao mesmo tempo, é como se a pessoa que parte tivesse ido ali no céu, e nós aqui, cheios de pressa, mesmo que passe o tempo que for, para tudo des-mantelar.

Caixas de cartas: um passeio na vida do outro. Cartas antigas, cartas de amor, cartas. Cartões nossos, meus muitos – sou tarada em cartão de arte e sempre estava a enviar algum de algum lugar. Cartas longas, curtas, borradas. Cartas do meu pai. Encontramos uma missiva dos tempos de noivado, e ele, tão senhorio, respeitoso, circunspecto, mas mesmo assim, amoroso, a fazer juras, combinarem casamento e uma casa toda deles. Meus pais casaram sozinhos com o padre e uma testemunha. Sem mais delongas. Não tinham condições financeiras para festa e foram ali na igreja e pronto. Uma outra carta, de Itajaí, tentando a vida pelo Sul, eu, recém-nascida e ele pedindo para a minha mãe ensinar a dizer: papai.  Claro que, as lágrimas chegaram todas. E um sentimento, primeiro de filme, passado lá atrás, de ver a vida e toda a sua ironia, transformando sonhos em realidade. E por vezes, essa realidade sim, não era tão romântica que nem o sonho. Depois, de olhar para o início do século 20, lá longe, e os meus antepassados se correspondendo, e hoje, eu aqui, como se: nunca te vi e sempre te amei. Pois a morte tem disso. É pura vida. E pode ter lá o seu encanto e graça. Quando a pessoa que se foi viveu muito. E nós que ficamos já somos adultos e apaziguados com essa partida.

Uma máquina de escrever Remington, a cara do meu pai, e do seu ofício – representante de móveis de escritório, infelizmente foi para o aproveitamento. Melhor essa palavra do que lixo. Estava enferrujada, guardada há décadas, com um selo estampado não de antiguidade, mas de um retrato de um tempo analógico e de papel carbono. O meu tempo!

Terminamos essa tarefa super mexidas. Tudo embaralhado. O remexer com os guardados secretos de alguém nos leva a um lugar de desconforto, mas também de descoberta. Passei esse sábado a reviver o filme As Pontes de Madison, aquele clássico com Meryl Streep e Clint Eastwood, em que os filhos descobrem uma mãe desconhecida ao lerem o seu diário quando da sua morte. Ou o conto de Virginia Woolf, “The Legacy”, que também fala de um quebra cabeça de um diário interrompido, quando do suicídio da personagem feminina. Um broche, um amuleto, uma caixinha de música, uma palavra iniciada… Também encontramos um diário de mamãe, com pensamento dos outros e os dela sobre a vida, as alegrias e muitas agruras. Algumas poesias domésticas, anotações sobre a existência. Uns rabiscos incompreensíveis, talvez tenha escrito nas noites solitárias e já mais velha… Também um diário de viagem de papai, quando da sua primeira e única vez na Europa, visitando minha irmã Teca e em estado de êxtase em Paris, Bruges, Suiça, Floresta Negra, Londres, Gales e outras estradas que ele jamais sonhou em conhecer.

Estamos ali, com sacolas lotadas de resumos dos souvenirs da vida de mamãe. Cada uma de nós saiu com o seu quinhão de herança. Uma herança que não tem dotes, nem joias, nem contas bancárias, mas uma herança de algo mais precioso, a subjetividade da sua vida em detalhes, que só quatro filhas queridas poderiam vasculhar com amor e respeito.

Feliz Dia das Mães, mamãe.

Ana Adelaide Peixoto Tavares – João Pessoa, 06 de maio, 2022


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