Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

COZINHAR


18/08/2014

Foto: autor desconhecido.

 “Comer nos põe em contato com tudo aquilo que compartilhamos com outros animais, e com tudo o que nos mantém à parte. É algo que nos define”

”Sem a virtude regendo seus apetites, escreveu Aristóteles, o homem, entre todos os animais, é o mais ímpio e selvagem, e o pior de todos em relação ao sexo e à comida”

Ouvi falar de Michael Pollan e o seu livro ,”O dilema do onívoro” ( viagem que vai do prato de comida até sua origem derradeira – o solo) e “Em defesa da comida”, através de Juca, meu querido marido que, adorava ler, e para meu espanto, ao des-arrumar suas estantes me deparei com inúmeros livros sobre comida, não gastronomia, mas a comida enquanto história, antropologia.

Ainda em “O dilema do onívoro”, Pollan também se reporta ao Supermercado, e sua alarmante uniformidade impostas pela superprodução industrial,, desordem alimentar, e os três mundos: o do cultivo, o da produção de alimentos em escala industrial , o do florescente negócio da agricultura orgânica, o que é promissor e enganoso. E aquele ligado à caça e à coleta.

Mais recentemente, li matérias sobre seu mais novo livro “Cozinhar, uma história natural da transformação”, onde, a partir dos quatro elementos da natureza — fogo, água, ar e terra —, o autor começa a esmiuçar uma história tão antiga quanto a própria Humanidade. Afinal, citando Lévi-Strauss, em “O cru e o cozido”, o homem é o único animal que cozinha e isso estabelece a diferença entre os animais e as pessoas. E Michael adverte que, cozinhar faz bem a saúde e que nesses tempos modernos, precisamos resgatar esse hábito vital que é o de fazer a nossa comida.
Para Pollan, o paradoxo moderno, está exatamente no fato de que nunca se falou tanto de comida e nunca se cozinhou tão pouco. Ninguém tem mais tempo nem desejo de passar horas na cozinha e cozinhar do zero da casca da cebola…até o prato na mesa.

Dentre tantas coisas, Pollan nos alerta sobre a comida industrializada, que está custando caro para todos nós. As empresas, afinal, não cozinham como as pessoas, tendem a usar muito mais açúcar, gordura, sal e ingredientes químicos. Tudo para que os alimentos durem mais e pareçam mais frescos do que são. Não é coincidência o aumento da obesidade e de doenças crônicas.

Ele também lembra que, no pós-guerra, indústrias fizeram campanhas maciças para convencer o americano a comer o mesmo que os soldados nas trincheiras: carnes enlatadas, alimentos congelados, batatas desidratadas, suco de laranja em pó, café solúvel… Tudo rápido, instantâneo, conveniente. “E eram campanhas dirigidas quase exclusivamente às mulheres, reforçando a ideia retrógrada de que era dela a responsabilidade de alimentar a família”. Ideia que no Brasil, até hoje perdura.

E depois dessa ideia do Fast Food enquanto uma ideia de inteligência para driblar o tempo, tudo fica mais difícil para se re-construir o ato de cozinhar como um ato político. O caminho para uma dieta mais saudável, baseada em alimentos frescos e não processados, passa diretamente pela cozinha de nossa casa… Se não houver essa mudança de hábito, quem vai ensinar a próxima geração a cozinhar? Sempre penso nisso no que diz respeito às nossas comidas regionais. Hoje se compra canjica, pamonha, nas padarias. Quanto às receitas mais trabalhosas: feijoada, cozido, essas raramente ainda encontramos alguma diarista que se disponha a nos brindar com a iguaria.
“É preciso reconquistar o território da cozinha. Cozinhar nos transforma de consumidor a produtor, e ainda nos dá a oportunidade de trabalhar diretamente para a nossa subsistência e das pessoas que alimentamos. Reforçamos os vínculos comunitários e familiares, ao mesmo tempo em que damos também um passo importante para tornar nosso sistema alimentar mais saudável e sustentável”, escreve.

Nas últimas décadas também se falou muito dos vilões da saúde como: o açúcar, o sal, o doce, café, refrigerante, fast food, carboidrato, gordura trans. E a cada tempo temos um salvador: bem vindos a chia, granolas, farinhas integrais. E hoje o sem glúten e o sem leite, imperam o senso comum. Sou daquelas que adoro uma coca cola gelada com limão. Não me privo disso uma vez na vida. Nem consigo ficar lendo as letrinhas dos ingredientes das embalagem. Procuro os sem conservantes e sem açúcar e isso já dá para o gasto. Jamais passaria sem pão, meu alimento preferido. Nem sem o queijo. E o vinho, um triângulo que os mediterrâneos bem sabem quando falam.

Pessoalmente, sempre gostei de brincar de cozinhado. Mas também sempre fui meio alvoroçada para a paciência que a cozinha exige. Reconheço que sou boa no improviso e em olhar a geladeira e fazer um refogado. Como gosto muito de comer, por tabela também gosto de programas de comida, como os de de Jamie Oliver, principalmente quando viaja ou quando faz pratos mais silvestres e rústicos. Adorei um programa de natal, quando botou seus 3 filhas pequenas na cozinha para que se melassem com farinha, enquanto a mulher e seu bebê também participavam. Nigella, com suas receitas também árabes, e seus scrumbles. A Pequena Cozinha em Paris, com Raquel Khoo me encanta uma cozinha pequenina e multicultural, com tanto glamour francês, de uma coreana inglesa, que faz e re-faz a culinária francesa do século XXI numa quitinete rodeado de ervas aromáticas por todos os lados. Também gosto da filha de Gil, Bela, e suas receitas naturais; Olivier Anquier andando de motocicleta pelos Andes e nos mostrando os milhos de a a z pelo Lago Titicaca. Comida, lugar, gente, tempero, cultura, hábitos, tudo no mesmo balaio. E por fim Rita Lobo, pois sou fascinada pela beleza, e Rita é linda, dá receitas práticas, informa dicas, e ainda nos serve com utilitários que são verdadeiras obras de arte. Tudo isso na TV. Mas quando vejo uma dona de casa legítima colocar seu feijão no fogo, e na sua alquimia alimentar sua gente, nada mais enternecedor.

Mas nem sempre foi assim. Entendia a cozinha também como um lugar de opressão e submissão. O lugar onde findavam as mulheres casadas e seus sonhos não realizados. No começo não queria esse lugar e, quando casei, enfeitei minha cozinha e deixei lá, quarando, com um paninho sobre o fogão e um jarro de flor, e um bujão de gás adormecido que durou 6 meses. Enquanto nós, os noivos, a perambular pelas lanchonetes, casas dos familiares, em busca de um prato de sopa de feijão! Queria distância daquele espaço tão menosprezado pela minha geração de mulheres que queriam estudar, ter vida livre e se diferenciar da geração da mãe.

Até que indo morar fora, me vi sozinha nesse espaço das alquimias. E durante quase um ano , me despi do medo e me aventurei nas sopas, risotos (arroz com legumes variados) e massas. Um dia, fiz uma feijoada noturna que foi um sucesso. E aí desmistifiquei esse saber. Não digo que sei cozinhar. Mas dou conta de um prato! Como não como carne, tudo fica mais fácil de ensaiar.

Nessa história do Pollan, o que mais ele enfatizou nas suas entrevistas enquanto participava da Flip 2014, foi ressaltar a importância de se sentar à mesa. A mesa enquanto lugar de aprendizado; lugar de tempos e espaços enriquecedores; de dividir, ouvir, falar, dialogar, transformar, doar, respeitar e saborear o alimento e as companhias. Até hoje reverencio muito quem me convida para um momento à mesa. Acho um luxo alguém cozinhar para mim. E nunca esquecerei um almoço que fui nos 70´s em Strasbourg, onde a duração do almoço era quase eterna; e entre um prato e outro, copos distintos, vinhos diversos, um trago (ainda se fumava) e se jogava conversa fora a perder de vista. Era o tempo dos céus sem limites. 

Tive isso na minha vida familiar. E sinto falta. Na minha casa primeira, se tomava café às 7, se almoçava ao às 12.30 e se jantava às 19. Comida simples e diversificada e saborosíssima. À noite era tudo frugal: sopa, raízes nordestinas, café com pão , bolacha não. E só. Não existia lanches noturnos. Só depois que descobri o Mundial lanches. Por isso éramos todos magros. E papai não gostava quando caia um talher no chão. Era somente nessa hora que ele se irritava. No mais, conversávamos, arengávamos, ríamos e silenciávamos. Era uma hora sagrada, embora não rezássemos.

Hoje depois de ver tantos filmes maravilhosos sobre a comida (A comilança, A festa de Babette, Como água com Chocolate, O tempero do Amor, Chocolate,), continuo apreciando muito uma boa mesa. Adoro ir ao mercado, escolher o que como diariamente, me cercar da família/amigos, e entre um gole /um garfo e outro, pequenas doses de conversas, carinho, e amor. E como tempero, uma pimenta ardilosa e ardida e quem sabe um saquinho de batata frita que ninguém é de ferro.

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa, 16 de agosto,2014


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