Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

Cópia Fiel: E porque tanto sorri a Monalisa?


28/09/2011

Foto: autor desconhecido.

 Para Lucas e Daniel (Aniversariantes do mês, e obras de arte originais)

O Original é a Cópia – (Jacques Derrida)

Desde que o filme Cópia Fiel foi recebido com aplausos em Cannes 2010, que procurava esse filme ansiosamente. Sou fã ardorosa de Juliette Binoche (Recebeu a Palma de Ouro em Cannes e chorou em solidariedade e protesto, pelo também cineasta Panahí, preso no Irã) e gosto de filme iraniano! Ponto. E os assuntos de originalidade, cópia, apropriação, fizeram parte também da minha pesquisa do doutorado, trabalhando com As Horas, Mrs. Dalloway e Virginia Woolf. Até que li recentemente o texto de João Batista de Brito (Cópia Fiel, Jornal Contraponto- 2 a 8 set.2011). Exaltando de contentamento, fui comprar minha cópia, pirata, para Walter Benjamim nenhum botar defeito, já interagindo com os conceitos em questão.

Em seu texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, Walter Benjamin diz que “a obra de arte sempre foi reprodutível”. Fala também de conceitos sobre Autenticidade: “Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra.”; Conceito da Aura: “uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante por mais perto que ela esteja”; e de Destruição da Aura: “Cada dia fica mais nítido a diferença entre a reprodução como ela nos é oferecida pelas revistas ilustradas e pelas atualidades cinematográficas, e a imagem. Nesta, a unidade e a durabilidade se associam tão intimamente como na reprodução, a transitoriedade e a repetibilidade. Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar ´o semelhante no mundo´ é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-lo até no fenômeno único.”

Ainda segundo Benjamin, a obra de arte sempre foi reprodutível. E o que os homens faziam sempre podia ser imitado por outros homens. Desde a Idade Média, com a xilogravura, depois no século XIX com a litografia. Mas foi no século XX que essa reprodudibilidade vai explodir, com o cinema , a fotografia, para mais tarde alcançar seu ápice com a Pop Art e Andy Warhol, legitimando as cópias, com suas sopas Campbell ou a imagem de Marylin Monroe, ou ainda a garrafa de Coca Cola, eternizada em espaços da tradição. Basta que se entre numa loja de um grande museu, como a Tate Modern em Londres por exemplo, para que enlouqueçamos de desejo para adquirir posters, camisetas, cartões, canecas, etc..do nosso artista preferido. Já tive uma borrachinha de apagar com a obra de Miró estampada. E uma “mulher troncha” de Picasso impressa numa camiseta, que guardo como relíquia à espera da moldura que venha a lhe conferir status para as paredes.

O aqui e agora de um objeto também foi representado de forma extremada no movimento Dadaísta, ou em caso mais extremado como em Marcel Duchamp e sua Fonte, que ao retirar um objeto não tão artístico assim, do seu lugar de funcionalidade, atribuiu-lhe um outro tempo e também um outro lócus de observação.

O filme, Cópia Fiel, começa me lembrando de outros filmes de encontros como: Antes do Amanhecer e Antes do Por do Sol, Direção de Richard Linklater, (estórias de um casal se apaixonando e se re-encontrando primeiro em Viena e 10 anos depois em Paris, e falando falando e falando, sobre paixão, amor, despedida, re-encontro, e seguindo adiante.

Cópia Fiel, trata de (mais) uma obra singular de Abbas Kiarostami. Vladimir Lazo diz que: “É como se depois de duas décadas de seus filmes serem descobertos na Europa, quando então passou a ser comparado a Roberto Rosellini, o cineasta finalmente realizasse o seu Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1954). E faz uma cópia fiel de si mesmo (do seu cinema), evoca outros mestres, e por fim, irrompe belo e original”.

Cópia Fiel, se apropria desses conceitos da arte, para estende-los não somente às esculturas, objetos de arte, mas principalmente às relações humanas, no caso, à relação amorosa. A estória é sobre o encontro de um homem e uma mulher, aparentemente um conferencista James Miller (William Shimell) e uma espectadora (Juliette Binoche), mas que durante o filme vamos nos confundindo sobre se estão a brincar de marido e mulher ou a representar tais papéis. Para mim pouco importou a brincadeira, pois o que me saltou aos olhos foi primordialmente o tema das distâncias entre marido e mulher diante do caminhar na vida. Interessante notar como o tema das diferenças ia surgindo, e do casamento propriamente dito. O jogo de espelhamento e de duplos começa por ocasião de uma parada num Café, onde são confundidos como marido e mulher (será que têm essa Aura?), e a partir daí, passam a se comportar como se assim o fossem. Brincando com o espectador da veracidade das coisas, dos fatos e da conseqüência disso, seja em momentos de sedução e de aprendizes de flanêur, seja nos momentos de tensão, mágoa, e cobranças.

No caminho para Lucignano, temos cenas em igreja, sinos, casamentos, fotos, tudo entrecortado com passagens silenciosas, monotonia, esquecimentos, desencontros, ritmos desencontrados, indiferença, café que esfria, datas esquecidas, batom vermelho e brincos que não mais seduzem. Até que, diante de uma escultura onde uma mulher recosta sua cabeça no “meu ombro e chora”, Ellen (a personagem de Binoche), fala do que sente com a cena, mesmo que a escultura não seja “autenticada”. Já o especialista, James, embora defensor da cópia, nem sempre se deixa comover pela fidelidade das emoções mundanas, e mais ainda femininas. Tão pouco se comove com cena sem arte e originalidade. Ellen decide fazer uma enquete com os visitantes, para testar sua leitura “original”. E um casal pego à revelia para pesquisa instantânea, concorda com ela, para fúria do marido falso, ou seria verdadeiro? E depois, ainda por cima, o marido-exemplo vem com um conselho de quem sabe das coisas, do casamento e de mulher: “ Sua mulher está a precisar de suporte…,ponha a mão no ombro dela!”, diz do alto da sua percepção. James obedece. Elle, entusiasmada com o gesto, interpreta aquela mão como um sinal verde para outras abordagens, o que veremos ser uma pista/vestígio falso. A obediência tinha seus limites.

Outra cena que me encantou, foi a cena das fotos de casamentos na igreja. Numa visita ao local onde os noivos sempre tiravam fotos para dar sorte, James esperava entediado do lado de fora, num perfeito enquadramento de uma pintura original. E, quando todos os casais de noivos vem suplicar uma foto, ele, irritadíssimo nega. E ficamos diante da sua irritação, olhando para lá e para cá, numa câmera que se faz igualmente irritante e monótona. Ellen é romântica, mergulha na aura dos lugares, sem muita preocupação com a realidade per se. James é inglês, cético, tem olhar exigente e não se deixa levar por aquele lugar de língua dançante Mamma Mia! E por entre línguas, interpretações, recepções , o tempo vai se instaurando como um elemento cada vez mais intransponível. Como bem observou Marcelo Hessel : “Esse tempo que cerca James à esquerda e à direita na cena da foto com a noiva. Lucignano surge constantemente em espelhos, janelas, romanceada por velas, por não dá pra negar a História. Mas enquanto James Miller filosofa contra o "eterno" da arte, contra a mistificação, porque afinal logo retornará para a Inglaterra, a francesa Elle está sofrendo no rosto o peso dos anos mal vividos. Fora do Irã, é sobre as mulheres que age o tempo de Kiarostami. Kiarostami está interessado no tempo; no tempo inscrito na paisagem, é que molda os homens. Mas com as mulheres é diferente. Elas vivem no Irã em uma espécie de estado de suspensão, numa semi-clandestinidade, e sobre elas o tempo não parece agir. É uma condição trágica, no fundo, e Kiarostami tem passado anos fazendo filmes com close-ups de mulheres para tentar socorrê-las.”

Ellen não se importa com a autenticidade das coisas da vida. Mesmo sendo dona de uma galeria de arte, mais alto lhe fala a vida, a emoção, o quadro do cotidiano com filho que não quer estudar, que lhe exige seu sobrenome no autógrafo, e a luta para estar presente. Contraditoriamente, ela pede autógrafos em alguns livros do mestre. Nem ela mesma sabe o por quê; talvez para obedecer essa mesma lei de originalidade que trata com certo desdém, mas que paradoxalmente referenda o seu presente para amigos – um livro autografado vale mais que uma página em branco.

João Batista Brito no seu excelente artigo citado, nos sugere duas senhas para interpretações, uma, levando em conta uma homenagem intertextual ao filme Viagem a Itália, de Rosselini, 1954, e outra uma leitura metalinguística e filosófica sobre o ato de representar o real como um pretexto diegético, tendo como intertexto o filme Verdades e Mentiras de Orson Welles. Mas como ele mesmo diz, seriam interpretações conceituais, e que nenhuma modalidade de arte é somente conceitual, pois se tornaria redutora. Eu, particularmente, segui à risca a orientação do professor João: “experimentar a co-existência das duas leituras, produzindo assim o efeito que define a natureza da arte, acima de qualquer conceito, o efeito estético”. E nesse efeito estético, me encantei com Lucignano; re-visitei memórias; Siena e suas casas cor de tijolo; enchi a boca d´água com um certo caldo minestrone e vinho Chianti; deixei-me encantar por aquele olhar enigmático dessa mulher de beleza misteriosamente simples, que é Binoche e sua liberdade azul; abri a cabeça às discussões sobre o que seria uma cópia fiel; às conversas nos becos da Toscana sobre uma relação conjugal; às cenas da viagem, com os rostos entrecortados pelos lugares, ao gosto se não da cereja, mas dos ciprestes italianos; às lembranças das aulas do professor Alfredo Cordiviola, na Pós de Recife, e a Walter Benjamin, suas Passagens; sobre o Valor de Eternidade, Cinema como Arte, Aura, e Camundongo Mickey…

E, ao final, por entre uma badalada e outra, e pelo apito do trem que não foi tomado, terminei o filme, com uma taça de vinho na mão, uma salada de agrião com mostarda francesa na outra, e a cabeça cheia de idéias, questões, e aquele ar de quem está a matutar sobre as verdades e mentiras da vida.

Quanto à última possibilidade de João Batista, a de não gostar do filme e de achá-lo “maçante, absurdo e inútil”, não precisei nem sair da sala, para constatar todas as diferenças da vida, digo do casamento, para Cópia Conforme nenhuma refutar. Através das Oliveiras, fiquei ainda mais intrigada com o aqui e agora, não mais da obra de arte, mas da existência: única, em estado de percepção aguçada, das passagens do tempo, dos vestígios que nem todos os objetos da reprodutibilidade técnica, dariam conta.

Um brinde ao violino de Joshua Bell que, também inspirado, Qüiça (com trema e sotaque de Patácio Peixoto, meu “parente/serpente” em Cordel Encantado), nas idéias do filósofo alemão, deslocou seu talento e aura de maior violinista do mundo, e dos espaços urbanos enclausurado dos teatros consagrados, um dia foi tocar seu instrumento virtuose no metrô de Nova York. Para espanto dele próprio, ninguém chegou a parar para ouvi-lo, achando que, o maior violinista do mundo, fosse somente mais um artista de rua que pedia uns trocados, uma cópia, para que seus acordes parecessem maiores do que realmente eram, através não mais das oliveiras ou cerejas, mas do eco de uma Estação de Metrô, não mais aquela retratada pelo poeta imagista Ezra Pound, mas uma outra cópia de um metrô solitário qualquer, em fim de uma noite vazia e de acordes comuns.

Numa Estação do metrô
A aparição desses rostos na multidão:
Pétalas num galho molhado, preto.

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa, 27 de setembro de 2011


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