Geral
“Construção”
20/10/2013
Foto: autor desconhecido.
A genialidade de Chico Buarque de Holanda produziu “Construção”, no meu modo de ver, a mais bem elaborada letra da Música Popular Brasileira. Composta em 1971, logo após seu retorno da Itália onde esteve exilado. A mensagem da música é toda apresentada em versos do decassílabo que terminam sempre numa palavra proparoxítona. Narra a vida de um operário da construção, numa rotina sem diferença no seu dia-a-dia, mecanizada, fria, sem emoções, sem perspectivas. É uma inteligente crítica à exploração do trabalhador em nossa sociedade capitalista, onde ele é visto como objeto, sem ser respeitado como ser humano, visto como mero instrumento de utilidade, apenas para o enriquecimento, dos poderosos.
“Amou daquela vez como se fosse a última/beijou sua mulher como se fosse a última/e cada filho seu como se fosse o único”. Começa narrando a repetição monótona do seu dia, quando sai de casa para o trabalho. Como não tem projetos, de vida, faz tudo mecanicamente como se fosse a derradeira vez que fizesse. A relação familiar como se fosse contingência natural do seu viver. Deixa/Beija a mulher e os filhos e parte para a labuta.
“E atravessou a rua com seu passo tímido/subiu a construção como se fosse máquina/ergueu no patamar quatro paredes sólidas/tijolo com tijolo num desenho mágico/seus olhos embotados de cimento e lágrimas”. Caminha sem se dar, a devida, importância como pessoa, por isso a timidez em seus passos. E ninguém o percebe, é apenas mais um no meio dos transeuntes. Sobe ao local de trabalho como se fosse um equipamento a mais para a construção do edifício. Entretanto é do seu suor, do seu esforço, da sua habilidade no ofício que “ergue no patamar quatro paredes sólidas”. Mas é um construtor anônimo, sem referência nem reconhecimento da sua contribuição. Cada tijolo posto compõe a magia da transformação do nada em alguma coisa concreta. Nas alturas seu olhar só percebe o tráfego que continua no seu curso de normalidade lá embaixo e a incerteza do amanhã, a convicção de que nenhuma novidade acontecerá na sua vida. O cimento embota seus olhos tristes lacrimejados pelo sofrimento resignado.
“Sentou pra descansar como se fosse sábado/comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe/bebeu e soluçou como se fosse um náufrago/dançou e gargalhou como se ouvisse música”. O momento da folga, a hora da alimentação. O instante de degustar a “quentinha” que sua mulher havia preparado o “feijão com arroz”. É uma ocasião em que se sente príncipe porque de qualquer forma estava saciando a sua fome. Bebe, soluça, gargalha, dança, numa manifestação momentânea de alegria.
“E tropeçou no céu como se fosse um bêbado/e flutuou no ar como se fosse um pássaro/e acabou no chão feito um pacote flácido/agonizou no meio do passeio público/morreu na contramão atrapalhando o tráfego”. Na hora do seu curto e possível lazer não se dá conta de que está a muitos metros de altura e não se apercebe do perigo que corre. Num descuido tal se vê despencando do alto em direção ao chão. Ao bater no solo agoniza entre as pessoas que transitam pelo local. Transforma-se em espetáculo de uma tragédia. Não há quem se importe em saber quem seja. É apenas mais um que morre sem que haja a necessidade de identificação, porque isso não tem muita importância para a vida normal da cidade. Apenas um lamento, a sua queda no meio do passeio público, “atrapalhou o tráfego”. A sua vida andou na “contramão” e a sua morte parou na “contramão”.
• Integra a série de crônicas “PENSANDO ATRAVÉS DA MÚSICA”
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