Rui Leitão

Jornalista e escritor.

Geral

“Chão de estrelas”


17/11/2013

Foto: autor desconhecido.

“Chão de estrelas” é um poema cantado, com um conteúdo lírico extraordinário. Podemos dizer, sem medo de errar, que se trata de uma das mais belas canções românticas da música brasileira. Sílvio Caldas e Orestes Barbosa nos presentearam com essa jóia que se tornou antológica, no ano de 1937. Eles na letra colocam, de forma impressionantemente poética, o cantar de um homem saudoso de uma paixão, contrastando com os instantes alegres de um artista que viveu momentos de glória nos palcos.

“Minha vida era um palco iluminado/eu vivia vestido de dourado/palhaço das perdidas ilusões/cheios dos guizos falsos da alegria/andei cantando a minha fantasia”. Percebe-se que o personagem é um cantor. Revive na memória os momentos em que nos palcos recebia aplausos. A vida era iluminada por essa sensação de que o mundo era uma festa. O encanto com o sucesso fazia dele uma pessoa que se iludia com as aparências dessa “fantasia”. Não compreendia que havia em torno de si muito de manifestações falsas.

“Entre as palmas febris dos corações/meu barracão lá no morro do Salgueiro/tinha um cantar alegre de um viveiro/foste a sonoridade que acabou”. Traz a comparação das palmas em suas audições com as “palmas febris dos corações”, quando quer dar maior importância ao aplauso verdadeiro que os corações apaixonados conseguem oferecer. Recorre a lembrança da alegria vivida no morro do Salgueiro, onde ali sim ouvia-se um cantar pleno de felicidade, feito a duas vozes que se amavam,à semelhança do cantar de um casal de passarinhos num viveiro. Triste, reconhece que “essa sonoridade acabou”, porque a companhia do canto já não está mais com ele.

“E hoje, quando o sol, a claridade/forra o meu barracão, sinto saudade/da mulher, pomba-rola que voou”. Novamente usa metaforicamente a imagem do viveiro, ao falar que dali voou a “pomba-rola”, a mulher que fazia daquele lugar um ambiente de canto alegre, expressão de êxtase amoroso. O dia, ao amanhecer, tendo o sol banhando de luz seu barracão, faz despertar uma imensa saudade dela.

“Nossas roupas comuns dependuradas/na corda, qual bandeiras agitadas/pareciam um estranho festival”. A nostalgia toma conta dele ao ver suas roupas, costumeiramente colocadas numa corda, agitarem-se como se nada tivesse mudado. O festival que o vento proporcionava ao agitar as “roupas dependuradas”, permitiam, por minutos, viver a ilusão de que os dois continuavam juntos.

“Festa dos nossos trapos coloridos/a mostrar que nos morros mal vestidos/é sempre feriado nacional”. Registra o personagem de que a vida nos morros é assim, embora impere a pobreza, persiste sempre um clima de festa, como se fosse “feriado nacional”.

“A porta do barraco era sem trinco/mas a lua furando nosso zinco/salpicava de estrelas nosso chão”. A beleza poética desses versos transmite uma força romântica sem igual, ao colocar que, mesmo “sem trinco a porta do barraco”, a lua vinha presentear-lhes “furando o zinco” para espalhar estrelas pelo chão. Era como se o universo se voltasse para aquele enlevo, encontros de um casal vivendo um intenso momento de amor. O brilho das estrelas forrando o chão que se transformava em cama do seu idílio sentimental.

“Tu pisavas nos astros, distraida/sem saber que a ventura desta vida/é a cabrocha, o luar e o violão”. Finaliza esse passeio poético construindo uma imagem da sua cabrocha “pisando os astros, distraída”, como se ela não fosse uma pessoa normal. Ela ali, enquanto viveu com ele, era deusa, era dona do céu, estava acima de todas as coisas naturais que conhecia. “A ventura da vida”, que a sua amada não soube compreender era ela, o luar e o companheiro das “cantigas” de amor, o violão.

• Integra a série de crônicas “PENSANDO ATRAVÉS DA MÚSICA”.

 

 

 


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