Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

Calma, Eu?


03/11/2015

Foto: autor desconhecido.

 Eu, nômade, sou outra, além daquilo que pareço ou do que falo. Eu sou um espaço de mim, migratório, de transição, nesta cartografia que me revela e me nega. Eu sou o espelho de mim, um lugar sem lugar… Na imagem invertida no espelho vejo apenas a imitação de mim em um eu unificado, categorizado, tão ilusório quanto as dimensões que se abrem na superfície polida. (Tania Swain, Meu corpo é um útero)
“Nunca imagine que não ser diferente daquilo que pode parecer aos outros que você fosse ou pudesse ter sido não seja diferente daquilo que tendo sido poderia ter parecido a eles ser diferente.”( Alice no país das Maravilhas
, Lewis Carroll)

Há alguns anos, estava numa fase de mal com a vida e esbravejando aos quatro ventos. Encontrei uma amiga de infância na rua e perguntei-lhe: “Como eu era no colégio?” Antes que eu terminasse a pergunta ela de pronto respondeu: “Calma!” Levei um susto….Dia seguinte o ex-marido ligou e fiz a mesma pergunta e a resposta foi imediata: “calma!”

Esta semana, re-encontrei minha turma das Lourdinas, turma essa com quem convivi longos dez anos da vida e lancei a brincadeira. Como nos lembrávamos uma das outras? Como fui a primeira a lançar-se na roda, ouvi novamente vários: “Calma!!” E pesquisando entre amigas ou irmãs eis que outras imagens surgiam sobre mim: “Ousada, linear, fala mansa, igual ao seu pai, distante, desligada (como um mutante!), braba, protetora, que parecia ter outros planos mais urgentes, imaginativa, criativa, transgressora, personalidade forte, temperamento difícil, independente, tipo peace and love, vivia sem olhar para quem, não dava satisfação, com o pensamento permanente sobre como achar este mundo que não estava ali e para o qual queria ir…., com a cabeça em outro lugar, uma panela de pressão antes do apito??!!. A panela de pressão juro que gostei e me imaginei prestes a explodir. O que não estava de todo errada. Vivi épocas de radicalismos e sonhos. Ou rebeldias, com e sem causas! Seria esse o meu retrato? Do I contradict myself? Assim como nos versos de Walt Whitman, de perto também não sou normal!

Eu nasci em toda parte, sob os céus agora estilhaçados dos gregos, dentro dos tamancos de uma fazendeira Bretã, em um teatro elisabetano, na fome e privação de minha avó, e na escola secular, compulsória e livre que o Estado foi tão gentil em me oferecer, mas também nas rebeliões que foram só minhas, nas bofetadas que as seguiram ou precederam, na aflição lúcida de Simone de Beauvoir e no fogão de Descartes, E há mais por vir! (Michele Le Doeuf)

Passei o resto do dia a pensar nessa pessoa tão calma que com certeza já me escapa por entre os dedos. Nas horas críticas, dizia para Juca, que eu era: “intensa e densa”. E ele ria…e eu me justificava quando estava quente que podias vir fervendo. Mas confesso que, quem não me conhece que me compre! E me acham calma! Hoje não sou tanto. Sou falante. mandona, dizem as boas línguas! Extrovertida. Explosiva. Espontânea. Exagerada! E mais uns ex…., Jamais morrerei de engolir sapos….,mas confesso que olhando mais de perto, e constatando minha anormalidade, pude re-conhecer a minha calma ainda me impregnando.

Tenho essa calma ainda dentro de mim! E não me exijo tanto. Com a solidão fiz um pacto desde menina. Com o cotidiano também. Não sei andar ligeiro. Meus passos são ainda mansos. Sou lenta em muitas coisas e acho que essa lentidão me confere esse adjetivo de calma. Claro que solto meus cachorros. Meus demônios. E me irrito fácil também- um siri na lata? Só no bloco de carnaval! Lembram do apito da panela? Mas aprendi a respirar. A por uma noite no meio. E deixar o rio correr….para lá prá diante, e nas suas curvas respirar de novo! E ser calma não é sinônimo de passividade. Pode-se ser calma internamente. Saber ser falante quieta. Ou silenciosa irrequieta. Ou ambas as coisas. Tenho quietude interna! Mas também sofro das angústias existenciais e dos males de Freud. Mesmo quando estou com a panela apitando….Lembrei-me do filme As Horas, que tanto fala de mim e de tantas mulheres:

“Eis aqui um espírito brilhante, uma mulher cheia de dores, uma mulher de alegrias transcendentes, que preferia estar em outra parte, que consentiu em executar tarefas simples e essencialmente tolas, examinar tomates, sentar-se embaixo de um secador de cabelo, porque é sua arte e seu dever” (As Horas, Michael Cunningham)

Tendo o cotidiano ao meu redor mas confesso que nunca soube lidar bem com esse negócio de casamento, família, almoço, conflitos, convenções, espaços, e tempos diversos. Como dizia Michelle Perrot: “O destino da mulher é a família e a costura…Ao homem, a madeira e os metais, à mulher, a família e os tecidos.” Eu queria todos os destinos! E daí quebrar-se a minha calma nas agruras da vida doméstica e cotidiana. Paradoxalmente, quando me vi sozinha diante das minhas perdas e tragédias pessoais, fosse por separação ou despedida definitiva, inconscientemente vi nessas circunstâncias, a possibilidade de recompor a minha calma solitária. Egoísmo? Pode até ser. Tive um médico homeopata que uma vez me sentenciou: “Ana, você não é mulher para casar!” Fiquei atônita na época. Logo em seguida entendi. Sempre precisei de um espaço todo meu. Espaçosa! Paradoxalmente gostava de ter meu companheiro por perto. Sempre quis andar no mundo. Gostava da solidão. Ensimesmar-me . Acho que tenho um quê enxadrista do meu pai, um certo se balançar com a perna em suspenso, um abstrair-se do mundo, talvez daí as colegas me verem com o seu ritmo e serenidade. E por entre uma estória interna e um pé no mundo, reflito sobre a vida e os meus mais sombrios instintos, segredos e mistérios, e também sobre o aspecto fugidio da vida e de nós mesmas. Com As Dores do Mundo , de Shopenhauer, reflito:

“Não há nada fixo na vida fugitiva: nem dor infinita, nem alegria eterna, nem impressão permanente, nem entusiasmo duradouro, nem resolução elevada que possa durar toda a vida! Tudo se dissolve na torrente dos anos. Os minutos, os inumeráveis átomos de pequenas coisas, fragmentos de cada uma das nossas ações, são os vermes roedores que devastam tudo quanto é grande e ousado…Nada se torna a sério na vida humana; o pó não vale esse trabalho.”

Concluo que, o ser humano é um poço de contradições, de ambiguidades, contrastes, e características que nem sabemos ter, e que com a idade, ou perdemos, ou acentuamos com o tempo, fazemos as devidas colagens com os aprendizados; viramos nódoas dos sentimentos não tão nobres; outras luzes são ligadas; cores outras se não preto ou branco, mas 50 tons de todas as cores! E por aí vamos cantando eu vou, eu vou, para casa agora eu vou. Nem lobo, nem vó, nem chapeuzinho, ou outra personagem qualquer.

Somos o que somos e mais tantas coisas!Uma parte de mim é só vertigem…..: Alegres, tristes, melancólicas, eufóricas, bipolares, sonhadores, deprimidas, astutas, invejosas, autoritárias, marrentas, mesquinhas, corajosas, leais, simples, complicadas, doentes, inseguras, maltratadas, e presas à tantas expectativas de um mundo ao nosso redor.

E por entre calmas, calmarias, e outras surpresas, a gente envelhece se distanciando e se re-aproximando de quem um dia fomos, e de quem somos até nos perder de vista….E com Clarice Lispector e sua Água Viva, eu encerro essas divagações sobre mim.

"Eu me ultrapasso, abdicando, de mim e então sou o mundo; sigo a voz do mundo, eu mesma de súbito com voz única….Mas o meu principal está sempre escondido. Sou implícita. E quando vou me explicitar perco a úmida intimidade….A vida mal e mal me escapa embora me venha a certeza de que a vida é outra e tem um estilo oculto."

P.S- Para minhas amigas da 4ª Série A, das Lourdinas, que me ajudaram a resgatar algumas pecinhas do meu quebra cabeça!Com calma!!!

Ana Adelaide Peixoto – 25 de outubro, 2015


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