Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

Aquarius: Madeira que cupim não rói


07/09/2016

Foto: autor desconhecido.

A casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos….Evocando as lembranças da casa, adicionamos valores de sonho. Nunca somos verdadeiros historiadores;somos sempre um pouco poetas, e nossa emoção talvez não expresse mais que a poesia perdida.

Quando a casa é feliz, a fumaça brinca delicadamente acima do telhado.

Aquarius, o segundo longa do pernambucano Kleber Mendonça filho (O primeiro O Som ao Redor – que já havíamos nos apaixonado pelos sons e ruídos da metrópole), que teve estreia mais que comentada no Festival de Cannes último, já estreou num momento político brasileiro conturbado, de ruptura, e divisão de um país. E como tal, Aquarius é um filme de resistência e não foi à toa o protesto que os atores fizeram em Cannes e os boicotes que se seguiram quando do seu lançamento nacional. Clara (a personagem principal) era todos nós resistindo a um Poder maior.

Aquarius, fala do des-locamento das pessoas nas grandes metrópoles, no caso Boa Viagem-Recife, onde a especulação imobiliária desenfreada vem como um trator, passando por cima de pau e pedra, literalmente, e dos espaços e dos tempos simbólicos perdidos.

Toda pessoa deveria então falar de suas estradas, de suas encruzilhadas, de seus bancos. Toda pessoa deveria fazer o cadastro de seus campos perdidos
Sonia Braga (a protagonista) maravilhosa e brilhante como a personagem Clara. Uma mulher simples que vive apaziguadamente os seus 60´s, de quem teve uma vida plena. Sofreu um câncer de seio – como muitas de nós mulheres da atualidade, que enfrentam essa doença que nos assombram cotidianamente. Ninguém sobrevive a um câncer impunemente! Clara fica viúva cedo, tem 3 filhos, hoje adultos, neto e uma empregada doméstica (Ladjane) que há anos é mais que uma serviçal; é também uma cúmplice solidária. Clara é jornalista, hoje tem uma vida mansa, aposentada, e se dá ao desfrute de se balançar e cochilar na rede, sem culpas nem sobressaltos. Uma sabedoria. Gosta de ir à praia mergulhar. E de dançar e falar da vida com as amigas na festa. Paquerar de leve, mesmo com sua cicatriz avassaladora, mas que , ao invés de retração e pudor, a marca lhe dá força e poder, de quem sabe o valor do corpo e dos seus sentidos. Ousa até abordar quem deseja. Um desejo meio ambíguo entre o não e o sim – Quero que você me coma!

A casa natal é uma casa habitada…a casa natal está fisicamente inserida em nós. Ela é um grupo de hábitos orgânicos. A casa natal é um centro de sonhos….um abrigo de devaneio….habitar oniricamente a casa natal é mais que habitá-la pela lembrança; é viver na casa desaparecida tal como ali sonhamos um dia.

Sua casa seu refúgio. Seu porto seguro povoado de memórias , quadros, bilhetes, objetos afetivos, cheiros do passado, lembranças. Os seus objetos sólidos que não se desmancharam no ar. Como o LP de John Lennon – Double Fantasy, que diz ter comprado uma semana antes do seu assassinato brutal. Esse espaço subjetivo lhe apazigua diante da solidão e de outras vicissitudes da vida. Não faz drama e até tenta dar uma paquerada no Salva- vidas da praia (Irandhir Saantos) a quem ninguém resiste!

Mas o verdadeiro armário não é um móvel cotidiano. Não se abre todos os dias. Da mesma forma a chave, de uma alma que não se entra, não está na porta.

Como não fazer a referência à música Aquarius, à Era de Aquarius, à peça Hair, à Contracultura. Peça inclusive que teve Sonia Braga, ainda uma garota, no elenco, nua e ousada, como a música e o texto pediam. Hoje, a atriz de trajetória de sucessos no cinema e TV, volta à tela, com seus longos cabelos negros e seu rosto belo e emblemático com as marcas de tudo que a vida lhe trouxe ao seu redor.

O filme é longo, lento, propositadamente fazendo contraponto da vida de Clara , que não tem pressa, com a do dono da imobiliária, Diego (Humberto Carrão), que já negociou com todos os proprietários, menos ela, que ousa dizer Não! É dada a largada de uma guerra nem tão silenciosa assim. A tortura é velada e explícita. Festas com barulho no andar de cima; bacanais; colchões queimados em áreas comuns; merda nas escadas; entra e sai; cultos evangélicos nas escadarias (a Igreja sempre presente!) e outras formas de se expulsar alguém. Uma tensão anunciada que esperamos desde o primeiro minuto do conflito.

Toda grande imagem simples, revela um estado de alma. A casa, mais ainda que a paisagem, é um estado de alma!

Eu me identifiquei com Clara de súbito. Moro no Bessa há 32 anos, quando a roça era na porta da minha casa. Bois e vacas e cheiro de Café São Braz. Ao contrário de Clara, quero mudar, por questões de: segurança, despesas altas, estrutura doméstica, mas sinto também que fui expulsa sem me dar conta. Minha hera e trepadeiras que levou anos para crescer, numa tarde foi arrancada para dar lugar a um muro gigante com a desculpa de me proteger. E aos poucos também vou sendo expulsa sorrateiramente desse meu lugar de vida, lembranças e reconhecimento. Também como Clara, comprei o LP de John Lennon, para quem sabe escutar essa casa do passado, que compõe uma geometria de ecos.

Toda grande imagem simples, revela um estado de alma. A casa, mais ainda que a paisagem, é um estado de alma!

A trilha sonora do filme tem um quê de melancolia (ler Silvio Osias em seu Blog); em busca de um tempo que já urge ou ruge! Uma música que inclui um quintal de Roberto Carlos onde hoje é o playground. A ironia é que o filme começa e termina ao som da música Hoje, de Taiguara, música igualmente esquecida no fundo das memórias de um tempo. Uma música nostálgica que contrapõe o hoje que não é mais ontem. E um ontem que não encontra mais um lugar neste mundo. Um hoje que não tem mais lugar para quem vem de ontem. Um ontem do apartamento onde se viveu, do peito que um dia se teve (literal e simbolicamente), do sexo que se fez enlouquecidamente em cima de uma cômoda qualquer; das noites enluaradas dando cavalo de pau à beira mar ouvindo fita cassete. Clara, uma mulher que passeia pela vida e que questiona o seu lugar no prédio Aquarius, em Boa Viagem e no mundo. Um mundo rápido e onde tudo se substitui. Às pessoas e às suas estórias – os cupins! Sentimental somos nós , Altemar Dutra!

Para os grandes sonhadores de cantos, de ângulos, de buracos, nada é vazio, a dialética do cheio e do vazio corresponde apenas a duas realidades geométricas. A função de habitar faz a ligação entre o cheio e o vazio. Um ser vivo preenche um refúgio vazio. E as imagens habitam.

Assistir ao filme também foi aplaudir ao elenco comprometido (fizeram protesto em Cannes – Fora Temer) e aqui, pessoalmente aplaudo meu amigo Buda Lira, Fernando Teixeira, Tavinho Teixeira (que eu não vi!) e Daniel Porpino. Atores já consagrados por aqui mas que também brilham em produções nacionais.

Aquarius é um filme político. Fala dos problemas da vida urbana de uma metrópole. Da pobreza (Pina x Boa Viagem); das perdas todas dessa vida e da reorganização des-organizada das nossas cidades, onde nenhuma memória é levada em consideração. Nem as memórias públicas nem muito menos as privadas. A luta des-igual das forças maiores. Se olharmos ao nosso redor, não temos mais o açougue, o farmacêutico, o armarinho, a padaria, o botequim, ou seja Hoje é tudo em rede e/ou grandes corporações, e só os tubarões ( e não somente os dos mares do Recife) ditam as regras da não-civilidade.

Mudem-se se forem capazes!

Clara, é mulher forte e sujeito da sua vida. Quer o seu pertencimento às suas paredes e sonhos do passado e futuro. Clara é madeira que cupim não rói!

Fechado no ser, sempre há de ser necessário sair dele. Apenas saído do ser, sempre há de ser preciso voltar a ele. Assim, no ser, tudo é circuito, tudo é rodeio, retorno, discurso, tudo é rosário de permanências, tudo é refrão de estrofes sem fim..

Sou o espaço onde estou

As citações em itálico são do filósofo francês Gaston Bachelard – em Poética do Espaço.

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa, 4 de setembro de 2016
 


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