Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

Amor


19/03/2013

Foto: autor desconhecido.

 (Amar)
É coisa de morrer e de
Matar mas tem som de
Sorriso.

(Hilda Hirst)

Havia um travesseiro… O artista plástico brasileiro, Leonilson, se utilizou desse objeto de aconchego e conforto, para resignificar um estado da mais amarga solidão do homem moderno e bordou uma palavra pequenina: Ninguém, num canto de uma fronha branca. Assim como o “Ninguém” de Leonilson, nesses momentos finais da vida, não somos, nem queremos ninguém. Não existe ninguém. Somos a poeira do início e fim da vida. E assistir a isso de camarote por alguém que se ama, nem mesmo as sonatas de Schubert podem minimizar o abismo que se estabelece.

O Amor dói. A velhice dói mais ainda!

Somente quando se vai ficando mais velha, e principalmente vendo seus pais chegarem lá, e através de muita observação e sensibilidade, é que vamos nos dando conta não só da obviedade da finitude, mas do isolamento e solidão inexoráveis da velhice.

Através da velhice da minha mãe, me ponho em contato cotidianamente com essa solidão cósmica do não pertencimento, da não integração, do não interesse da sociedade, da família, do mundo sobre ela e vice-versa. Não importando o quão viva a pessoa esteja e o quão alegre ainda se encontre. É algo muito maior. Uma outra dimensão da realidade que se estabelece, um vácuo profundo entre a pessoa e o mundo que a cerca. E confesso que, isso é assustador.

E esses pensamentos, mas não só , me inundaram quando assisti ao filme estupendo, Amor, do diretor austríaco Michael Haneke, rotulado por muitos de “cineasta da crueldade”,de quem eu só tive a chance de ver A Professora de Piano(2001).

No filme, temos um casal de velhos, interpretados maravilhosamente por Emmanuelle Riva (Hiroshima Mon Amour), Anne e Jean Louis Trintignant (Um Homem Uma Mulher, A Fraternidade é vermelha), Georges. Um casal de artistas da música, ela pianista, que ainda vão a concertos, conversam no café da manhã, tem suas pequenas birras e senso de humor, comem ovos poché, tomam uma taça de vinho e riem da vida. Ainda….para usar esse advérbio, ou ainda da falta dele…, tão cruel e tão próprio da juventude urgente e inapropriada quando em diálogo com a velhice: “Você ainda dirige?bebe?sai?dirige? VIVE?”

Até que, o imponderável acontece. Anne tem uma ausência, um AVC , depois uma cirurgia, e fica numa cadeira de rodas. A partir daí, Anne experimentará progressivamente um caminho inexorável rumo à distância, o silêncio, à falta de comunicação e sentido, frente à uma vida que não mais se integra, e onde a morte se anuncia. E o mais terrível, se anuncia não somente para ela, mas para seu amado marido também. Quando já se está tão velho, a morte de um, geralmente antecipa à morte do outro… literal ou simbolicamente. Pois enquanto Anne vai tendo pioras físicas visíveis e assustadoras: Male Male – Dói Dói; seu amado também começa a morrer; morrer através da observação da morte do outro e da inutilidade da própria existência, quando o fator tempo é primordial e inexorável.

O filme se passa todo dentro de casa. E assim conhecemos o apartamento amplo e impregnado de uma vida inteira daquele casal. Um casal típico europeu; que faz suas tarefas domésticas, senta para ouvir música, se cansa, dorme, mas o pulsar da vida “ainda” está lá. Diz um amigo que: “quando deixamos de fazer nossas necessidades fisiológicas por nós mesmos”, já é hora de se ir. O fim! Eu também acho. Como não fazer referência ao artigo brilhante , sobre morte digna, que li há anos na Folha de São Paulo, do famoso urologista: Dr. Miguel Srougi. Artigo esse que me levou às lágrimas da minha impotência, pois fazia pouco tempo que eu havia perdido meu pai, e não pude deixar de me penitenciar, por não ter sabido acolher, silenciar, e não vir com a minha preocupação vazia e inútil….assim como também vinha a filha do casal de Amor, minha musa professora de piano, e Madame Bovary, Isabelle Huppert.

O setting do filme, só corrobora essa solidão da velhice. Espaços vazios do corredor, do sallon, o hall de entrada, interrompido somente pela visita de um pombo. Na verdade duas visitas: a primeira, Georges ainda está ligado à vida, e não demora a abrir as janelas, para que o voo da liberdade seja possível . Já na segunda visita do pássaro desavisado, ele, já embrutecido pela morte, também não tem mais desejo de libertar nada; o fio tênue de conexão com a vida, havia se rompido implacavelmente. Todos já estão presos ao caminho do fim. O pombo também.

O início do filme é chocante, com a entrada dos bombeiros no quarto de Anne, presa numa suspensão espaço-temporal, como se tivéssemos o poder de congelar a vida. À exemplo, o conto do escritor americano William Faulkner, “A rose for Emily” e a necrofilia, como uma forma inútil de reter à vida.

O grande contraponto entre a vida e a morte no filme, é a personagem da filha, a magnífica Isabelle Huppert, que com sua insensibilidade típica dos jovens e dos vivos, fala de coisas mundanas, aplicações em bolsa, assuntos que parecem mais que surrealistas para quem está em cima de uma cama, vivendo num melindre de um sopro, presa pelos corredores sombrios do fim. A filha se preocupa, mas e dai? O pai pergunta: “De que adianta a sua preocupação?” É terrível ouvir isso, pois são realidades tão díspares que nem o humor britânico do genro de Anne, faz qualquer diferença.

A pessoa que está morrendo, na grande maioria das vezes tem um certo sarcasmo para com quem está com saúde. É um sentimento mesquinho, mas compreensível, de inveja e escárnio. Como se dissessem: “Não me venha com sua vida, que não quero ver!” Lembro tanto dos últimos dias do meu pai, quando eu entrava no seu quarto e lhe perguntava: “E ai papai tudo bem?” Aquela pergunta tão automática e cotidiana, era uma agressão para ele; e eu, no meu egoísmo de saudável, achava que estava cumprindo meu dever filial, e lhe trazendo um pouco de alegria. Qual o que! Ainda bem que entendi a tempo, e me silenciei. O silêncio e a compaixão são os únicos gestos cabíveis, quando não pudemos mais intervir no destino das coisas.

Lindíssima a cena quando Georges conta uma estória qualquer à Anne, para lhe acalmar a dor da morte em vida. Na mesma proporção, violenta, sufocante e atroz, o momento abrupto do desfecho, deixando-nos, a plateia , mudos e atônitos.

Saí do cinema frustrada que Madame Riva não tenha ganho o Oscar 2013 de melhor atriz. Sua velhice, imobilidade, força de expressão, beleza, feiura, degradação, tudo está supremo e superb!!! Uma linda mulher e uma atriz para não esquecer. Jean Louis Mon Amour, você envelheceu lindamente, com aquele mesmo olhar sedutor e enigmático que me fazia tremer as pernas….Nesse papel, de homem aterrorizado com a doença e morte da sua amada até o final, não sei se certo ou errado, mas saltando no abismo da escuridão do inevitável.

Como pontua o crítico José Geraldo Couto na Revista Bravo-Jan.2013: “Agora, não há nem indivíduos nem gestos cruéis. Cruel é a vida, com seu ciclo inexorável de envelhecimento, degeneração e morte. O único ato de violência é também um ato de amor, justificando o título.”

O amor dói. A velhice dói. Muito. E como conclui Couto, “A velhice é um país à parte” .

Ana Adelaide Peixoto, João Pessoa 4 de março, 2013

 


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