Geral
“Além do espelho”
22/04/2014
Foto: autor desconhecido.
Em 1991, João Nogueira compôs a canção “Espelho” em reverência a memória do seu pai. Um ano depois ele escreve, junto com o seu parceiro Paulo César Pinheiro, “Além do espelho”. A letra fala da relação que teve com o seu pai e da relação que tem com os seus filhos, um legado para ser repassado de geração em geração.
“Quando eu olho o meu olho além do espelho/Tem alguém que me olha e não sou eu/Vive dentro do meu olho vermelho/É o olhar de meu pai que já morreu”. Ao mirar-se no espelho, seu olho enxerga além da própria figura, vê refletida no seu rosto a imagem do pai que já não vive mais. No olho vermelho, que nunca deixou de chorar a saudade deixada, está permanentemente o olhar de quem durante muito tempo da sua vida esteve a lhe observar, na intenção de guiar o seu caminho.
“O meu olho parece um aparelho/De quem sempre me olhou e protegeu/Assim como meu olho dá conselho/Quando eu olho no olhar de um filho meu”. Um simples olhar manda recados. Aprendemos isso desde a infância, entender aquilo que os nossos pais queriam dizer ao nos direcionar seu olhar. Nele enxergávamos censura, aprovação, amor, alerta, tudo o que podia revelar-se como cuidado, proteção. Já na condição de pai repete o que muitas vezes percebeu no olhar paterno, quando se dirige ao seu filho. O objetivo é o mesmo, apoio, auxílio, zelo.
“A vida é mesmo uma missão/A morte uma ilusão/Só sabe quem viveu/Pois quando o espelho é bom/Ninguém jamais morreu”. A nossa passagem pela terra tem uma missão a ser cumprida. Uma delas é exatamente eternizar-se através da descendência. Daí o cuidado de fazer com que se construa uma história de vida que possa ser referência para os filhos, netos, etc. Se o “espelho for bom” a morte não apagará a sua lembrança, tornar-se-á imortal pelo respeito à sua memória.
“Sempre que um filho meu me dá um beijo/Sei que o amor de meu pai não se perdeu/Só de ver seu olhar sei seu desejo/Assim como meu pai sabia o meu”. Fica feliz ao verificar a continuidade do amor que herdou do pai quando um filho vem lhe beijar. Nessa demonstração de carinho e de afeto, registra-se uma comunicação pelo olhar. Nem é preciso falar nada, ele consegue compreender o desejo do filho, da mesma forma que seu pai entendia o seu.
“Mas meu pai foi-se embora no cortejo/E eu no espelho chorei porque doeu/Só que olhando meu filho agora eu vejo/Ele é o espelho do espelho que sou eu”. Ao acompanhar o pai morto na última despedida, deixava sepultado o corpo de um homem que amava e respeitava. Mas ao olhar seu filho, vê que ali está o “espelho do espelho”, a herança da dignidade e da decência que recebeu do seu pai enquanto vivo e que procura refletir na sua própria forma de ser.
“Toda imagem no espelho refletida/Tem mil faces que o tempo ali prendeu/Todos têm qualquer coisa repetida/Um pedaço de quem nos concebeu”. O reflexo não deixa visível apenas às semelhanças físicas passadas de pai para filho, mas também uma identidade de caráter, de personalidade, que tempo algum faz desaparecer.
“A missão do meu pai já foi cumprida/Vou cumprir a missão que Deus me deu/Se meu pai foi o espelho em minha vida/Quero ser pro meu filho espelho seu”. Orgulha-se ao considerar que seu pai cumpriu bem sua missão, fazendo-se um espelho em que tinha a alegria de se olhar. Chega agora a sua vez de produzir idêntico sentimento ao filho, vê-lo feliz ao observá-lo conduzindo- se na vida tendo o pai como exemplo.
“E o meu medo maior é o espelho se quebrar”. Finaliza demonstrando sua preocupação em não se fazer suficientemente capaz de promover essa transferência de pai para filho, e ter a tristeza de ver “o espelho quebrar”, romper a tradição de honra do legado familiar.
· Integra a série de crônicas “PENSANDO ATRAVÉS DA MÚSICA”.
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