Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Cultura

Aborto: Uma menina, uma atriz, e um filme


25/07/2022

Cartaz do Filme 'O Acontecimento'

…mas toda vez que me olho nua no espelho eu vejo o agressor, e ele me diz que não adianta eu me esforçar, meu corpo foi destroçado, e um corpo destroçado nunca mais será um corpo belo (Vista Chinesa, Tatiana Salem Levy)

Uma menina de onze anos que luta na justiça pelo que lhe é de direito, para fazer um aborto de uma gravidez indesejada, resultado de um estupro. Uma juíza que lhe pede? “Pode esperar mais um pouquinho?” E afasta-a dos pais e lhe manda para um abrigo. Não consigo imaginar a cabeça dessa criança, grávida, sozinha, e com essas lembranças da violência contra o seu corpo. “Um trauma, palavra que eu ouviria da polícia dezenas de vezes, interrompe tudo ao seu redor, interrompe o próprio mundo, embaralha o tempo, a memória, e você é arrastada para fora da paisagem” (Vista Chinesa). Quando me manifesto nas redes, escuto discursos religiosos inflamados: “Ela sabia o que fazia, tinha um relacionamento com o estuprador de 13 anos, você vai se haver com Deus! Fiquei a me perguntar que Deus é esse? Não sou religiosa, mas tenho lá o meu diálogo com o sagrado e os mistérios da vida, e tento respeitar a fé alheia.

Uma atriz de 21 anos, Klara Castanho, que conhecemos desde pequena das telas das novelas, foi estuprada, descobriu a gravidez já tardia (li que é possível), e de acordo com a lei, entregou o seu bebê para adoção. Sofreu igualmente violência da parte dos profissionais de saúde: a enfermeira vazou a informação; os médicos lhe julgaram, e a sociedade lhe acusou de desnaturada, como se abandona um filho? Hein? A imprensa marrom fez estardalhaço com a bomba da notícia e Klara teve que vir a público com a sua carta de explicações, desnudando uma experiência de horror que só a ela interessava, mas diante da exposição, teve que parir de novo suas dores da violência. É tudo em dobro! Em triplo! Tudo isso nas mesmas semanas próximas e os Estados Unidos retroagindo as suas leis para os tempos da brilhantina. As mulheres? Que lutem, que corram atrás, incessantemente. Pois os homens não entendem dos corpos das mulheres, e ditam as regras, o torna-os públicos e de domínio público, o que é mais devastador. O Governo planeja uma cartilha, dessas que vão de encontro à Constituição, às leis, às conquistas, para dar poder àqueles que deveriam acolher as mulheres, mas estarão de cartilha em punho para retroagirmos de séculos de opressão e violência aos corpos das mulheres.

Assisti ao filme, O Acontecimento. Direção Audrey Diwan, adaptado do livro Annie Ernaux, (Festival Varilux), veio num momento crucial que discutíamos e recebíamos as opiniões de ódio em relação às mulheres que sofrem/fazem estupro/aborto. O filme mostra o horror e solidão de se ficar grávida e se querer um aborto nos anos 60, mesmo na França. O julgamento. O silêncio. E a violência. Um filme cru, indigesto, mas tão necessário. Saí mexida muito. Com a nossa ignorância em evitar filho (a subjetividade desse processo); de como vivíamos em estado de angústia quando éramos jovens, contando os dias sim e os dias não; a pílula, que nos fazia tantos efeitos colaterais; e da ausência dos homens em todos os processos. São milhões de crianças sem o nome do pai, abandonadas pelo pai, e mulheres que são mães solo, quando desse abandono. Ninguém diz nada. A sociedade se cala. Sou a favor da descriminalização do aborto. E a cada dia mais. Sou de uma geração que viveu o boom da liberdade sexual e pagamos todos os preços.

Como foi dito pelos especialistas de respeito: precisamos falar de sexo com as crianças. E não venham me dizer que é para estimular a vida sexual delas. Esse assunto é silenciado há séculos. E porquê? Precisamos sim, desnudar esse constrangimento. O conhecimento é preciso. A denúncia. O alerta. Não é possível que em pleno século 21 continuemos no inferno que é ser mulher no Brasil! E no mundo!

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa, julho, 2022


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