Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Cultura

“A Palavra que Resta”


24/05/2022

“A magnitude deste romance está, primeiro, na invenção de um enredo poderoso sobre a dor da exclusão – a exclusão da miséria, do analfabetismo, da solidão, do preconceito. E se completa com a orça da linguagem que molda a história, palavra a palavra, na tradição dos grandes narradores brasileiros.” (Socorro Acioli, na contracapa do livro).

Este é o título do primeiro romance do escritor cearense Stênio Gardel. Sua mentora, Socorro Acioli, já disse tudo nessa citação acima.

O Clube de Leitura do qual faço parte, leu esse romance este mês de abril passado. Um romance para se ler de uma sentada. Curto. Afiado. Triste. Trágico. Mas com um instante de transcendência.

Hoje fico tão feliz quando vejo as mudanças do mundo quanto à sexualidade das pessoas. Meninas com meninas. Meninos com meninos. Trans. Travestis. E mais toda uma sigla LGBTQIA+. Na minha geração não era assim. Tinha três ou quatro amigos gays. E ponto. O restante se escondia em casamentos de conveniência. E um silêncio sepulcral. Gosto dos novos tempos. E aprendo cotidianamente sobre o que nada me estranho se é humano.

O romance desse moço com nome de bolero é um soco. Seco. Afiado e de uma poesia bruta. Como se pode fazer poesia com tema tão sofrido e violento? Stenio Gardel faz. E faz bonito.

Uma carta quer virou feto idoso e rebento tardio. Uma carta de uma vida inteira. A palavra, que “são muitas, eu pouco” (Epígrafe de Drummond). Toda uma vida carregando as palavras indecifráveis dentro do bolso, para quando velho, nem mais saber a serventia dessa leitura. Quaisquer que fosse a decisão? A irreversibilidade do tempo já tinha sido mais rápida!

No sertão nordestino, na miséria da ignorância, não tem lugar para homem que não é macho. Para florzinhas. A enxada? Tem sexo. Inegociável. E do contrário? Melhor a morte.

A poesia? Pensa Raimundo: “Um esticador de horizontes. Na poesia, uma palavra diz muito mais do que diz, é a palavra que se estica, onde a palavra sozinha não vai, com a poesia vai, voa, que nem os passarinhos, passarinho que escuta de longe o silêncio que é tão alto, silêncio alto, abrir amanhecer, encolher rio, esticador de horizontes…”

Não saber ler. Que dor. Não ler é ficar fora do mundo. Não conseguir ter acesso à informação. Ao entendimento. Cego e surdo, a compreensão é outra. Precária. Longe dos outros. E o silêncio se torna ensurdecedor. Ao ler o livro também lembrei do filme O Leitor, onde a personagem escolhe ser condenada e presa a confessar que não sabia ler e assim, trancando aquelas portas assassinas aos judeus incinerados.

Quando encontramos alguém sem ler, e que põe do dedo na tinta azul para certificar alguma coisa, sentimos no olhar dessa pessoa um constrangimento, uma tristeza da exclusão, não só das letras, mas do mundo. O mundo dos que sabem ler. E o mundo onde a vida acontece. O azul do tinteiro envergonhado, tão diferente do azul anil dos mares longínquos, ou de um céu infinito.

O romance de Gardel tem desertos, paredes, rios, poentes, caminhos, chuvas, cruzes, estradas, pedras, becos, casas e costelas (alguns títulos dos capítulos). E lamparinas e coisas imundas. E belas. E claro, Raimundo e a sua carta. De Cícero.

Raimundo. Mundo. Imundo. Padim Cícero. O Ceará. O mundo. A vida. O espaço do amor. Que amor? Aquele maldito. Escondido e que não ousou dizer o nome. Que nem aconteceu com Oscar Wilde, lá na Inglaterra, no século XIX/XX, mas que retumba ainda nos sertões de Euclides ou de Rosa. Sertão. Essa ferida!

 

Ana Adelaide Peixoto, João Pessoa 09 de Maio de 2022


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