Geral
A Menina Dodói
18/01/2011
Eu sou uma fruta Gogoia…
(Gal Costa cantando o Folclore Baiano)
Ela já nasceu de parto a fóceps. Depois , desde pequenininha teve crises de amígdalas que a deixavam insegura. Tossia toda a noite. Garapas quentinhas, e muita e muitas limitações: não podia tomar sorvete, banho à tardinha, levar pingos de chuva. Aos 7 anos, fez operação. A mãe, para poupá-la, levou-a para o hospital dizendo que era só um exame. Os colegas do bairro, todos sabendo da operação, ficavam perguntando a toda hora: “E que exame é esse?” E ela toda saltitante respondia: “Não sabe não, é? Um exame Poxa!” Acordou no quarto branco, com a garganta ardendo, aí entendeu tudo. Ficou meio ressabiada com essa estória de médico, hospital, notícias, e principalmente com a ironia quando lhe perguntam muito sobre uma coisa.
Fez outras cirurgias: de cisto no ovário, e ficou muito irritada quando o médico por fim afirmou que o cisto havia se desmanchado…., mas para não perder a viagem, tirou-lhe o apêndice! Até hoje não entendeu. Também fez cirurgia de vesícula, depois de duas dores agudas, onde todos pensavam se tratar de uma indisposiçãozinha intestinal. Ora bolas, dores! Aprendeu aí os ditames do fígado, por onde tudo passa e tudo filtra. E haja coisa na vida da menina para filtrar. Depois, de alguns kilos a menos, uma vantagem, tratou de passar o rodo no que não valia a pena se aperrear.
Arrancou muito chamboque de joelho andando de bicicleta. Ficava com os dois bichinhos em carne viva, para depois criarem uma casca grossa, e ouvindo da mãe: “Uma menina precisa ter pernas bonitas”. As suas, até hoje tem as marcas das peraltices da infância.
Acidentou-se gravemente. Fez uma cirurgia no nariz. Mas antes, o viu sangrar e muitos cacos de vidros nos olhos. Por pouco não viu coisa pior. Também levou pontos nos pés. Uma vez com um caco de vidro, na praia, outra também na beira mar, deu de encontro com uns búzios afiados, que ao invés de soprar o assobio das ondas do mar, lhe cortou profundamente a sola do pé. As areias ficaram vermelhas e de biquine e salgada, chegou na enfermaria. Por conta dos veraneios era chegada à uma insolação. Também pudera! Nenhum protetor, e Areia Vermelha escaldante durante todo o dia todo. À noite, febre alta. Mas feliz, pois estava com aquela cor de branca/preta incandescente.
Quando menina ainda, teve febre tifóide, ou gripe Espanhola, sabe-se lá! Dois meses na cama, e quando se tem treze/catorze anos, esse tempo é o suficiente para se pensar na morte. As amigas do colégio vinham visitá-la; a mãe se desdobrava em carinhos, mas a menina só piorava. Depois de recuperada, e de ver que tinha sobrevivido, caiu todo o seu cabelo. Cortou Joãozinho, e só não ficou mais triste, pois foi justo nessa época que descobriu o amor. E esse amor lhe achava linda com o cabelo ralinho. E quem sabe ela assim fosse mesmo.
Durante toda a vida, sua parte respiratória foi sempre um calo. Pois não é que as amígdalas lhe deixaram uma herança? A faringe! E uma certa dose alérgica. E aí, toda vez que tinha gripe, tinha sinusite, faringite, e todas as ites. Até hoje, já não conhece um resfriado. Só viroses brabas. As pessoas não entendem, pois as normais tem gripes que duram pouco, fumam, bebem, e no máximo deitam-se 2 dias. Quando apareceu a gripe suína, a H1N1, ela já teve a certeza: Pronto! Morreria disso! Mas graças às Deusas, escapara. Mas como tudo não é de graça, teve Dengue, e o mosquito a pegou de jeito. Acho que numa crise de ciúme das muriçocas, já que a menina é muriçoca da gema, dos blocos , digo.
Em uma de suas gripes, a menina estava no Peru, e viajou pelo Lago Titicaca gripada. Mas era jovem, e logo cedo, aos cuidados de uma Cholita, em plena Ilha de Taquile, teve o privilégio de levantar de um tapete de junco e tomar chá de coca, naquele cenário que de tão exuberante, a gripe foi para às cucuias, e ela de poncho e sampoña, põe-se a cantar…
Anos mais tarde, numa crise pós faringite, ficou com uma tosse alérgica por mais de ano. Foi se curar num sítio em Friburgo, que se fosse hoje, com certeza estaria morta. Teria morrido na enxurrada, e tossindo…O sítio era em Cantagalo, num recanto por entre as montanhas, frio e seco. Lá tomou banho de cachoeira e cantou Águas de Março, música que também morreu junto com o sítio de Tom Jobim. Nesse tempo, aprendeu tudinho sobre xaropes, eucaliptos, matruz, infusão, e por fim técnicas chinesa de moxabustão, com cheiro de queimado nas costas e acupuntura, que a curou até hoje. Mas a menina se cansou das técnicas alternativas, e hoje, apela para os venenos da modernidade. E viva a penicilina! Ficava sempre a pensar como era o mundo sem a droga. Como ficavam as dores, o sofrimento das pestes mundo afora. Pobre gente.
E também tinha umas viroses esquisitas, que duravam um dia. Sim, somente um dia. Como sabia identificá-la, quando a mãe lhe perguntava, ela sabiamente respondia: “Estou com aquilo mamãe!”. Era um objeto não identificado, que lhe dava calafrios, e enrolava-se num cobertor, não importava o clima escaldante do nosso verão. Uma vez, teve aquilo no carnaval de Olinda. Ficou um dia prostrada, enrolada de frevos e maracatus. Outra vez, teve aquilo em Atenas, novamente enrolou-se de história, de Acrópolis e das Deusas. Dia seguinte tudo tinindo! E durante toda a vida, aquilo esteve presente, cada vez mais raro, mas ali, sem nunca virar isto, como se quisesse dizer que um dia de Enrolada Rapunzel era preciso. Se não nos cabelos, que o fosse nas cobertas.
E as enxaquecas? A primeira foi por conta de um suco de maracujá! Até hoje tem receio da passion fruit. O sol, o stress, a falta de sono, a cerveja em excesso, a gordura, a raiva, tudo era um gatilho, para depois terminar numa veia dilatada na testa. Até o dia em que num vôo para longe, uma amiga lhe apresentou neozaldina, e viveu feliz para sempre….E também aprendeu que, como uma menina exagerada…, não podia transbordar, seu leito já vivia de umas certas hipérboles. Quanto ao sol? Só de manhãzinha. O stress? Relaxamento. A raiva? Meditação e pensar que a Terra é Azul! E que nada vale muito caldo. A menina tem aprendido.
Os partos dessa menina? Foram difíceis. Pois como quem tem problemas de saúde vai fazer respiração cachorrinho tranquilamente! Também pariu à foceps, reproduzindo à sua própria história. Teve filhos normal mas dolorosamente, constatando desde cedo que, ser mãe é padecer no paraíso. Depois desconstruiu tudo.
Pois não é que a menina teve uma vez uma pipoca roxa, uma pereba no peito do pé, que a deixou com o pé para cima, e gemendo de dor! Uma dor maior que a do parto. Depois ficou sabendo que essa pereba só aparece em gente pobre…Pelo visto a pobre menina andou por onde não devia, e pegou esse vírus exótico constatando que, até na doença tem luta de classes!
E nesse percurso dos males da civilização…., a menina sempre ficava a pensar sobre o que é ficar doente, sobre o cuidar, sobre o ser cuidada, sobre médicos, sobre a impessoalidade da medicina, e sobre sim o tanto que cada um agüenta. As pessoas não gostam da doença, e nem de quem fica doente, e menos ainda de falar em doença. Mas como não falar em doença, a menina ruminava, se o assunto desde sempre a acompanhava? E porque não falar de um assunto tão presente na vida de todo mundo. Não que fosse hipocondríaca, não era. Mas tinha uma célula debilitada para os males da vida. E ficava pensando como tudo era desigual: tinha gente que nunca tinha tido uma dor de barriga. Quanta injustiça! Mas sempre ouviu dos entendidos no assunto também que, a dor tem sim diferenças.
Uma vez, a menina leu que doenças respiratórias eram doenças do afeto. Ficou sempre a se perguntar sobre essa relação. Até porque numa época de tamanha perda e tristeza, a menina teve até síndrome do pânico e depressão. Não entendia o que era aquilo, ficava aflita, até que entendeu que não morreria. Quem estava para morrer era um outro. Quanto à depressão, também entendeu o seu devido lugar. E, como esses caminhos são por demais complexos, a menina aposentou sua curiosidade e foi cuidar da saúde e dos afetos.E desde que arrancou suas amígdalas, nunca mais deixou de tomar sorvete de pinha, e menos ainda, de aproveitar os pingos da chuva.
Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa, 17 de janeiro, 2011
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