Cinema

‘Cidade de Deus’ ensinou ao mundo o que é autenticidade’, diz Idris Elba em Berlim

Ator e diretor inglês apresentou no festival seu primeiro filme, o drama 'Yardie'


23/02/2018

British actor, director and executive producer Idris Elba speaks during a press conference to present the film "Yardie" shown in the "Panorama Special" category during the 68th edition of the Berlinale film festival in Berlin on February 22, 2018. / AFP PHOTO / Stefanie Loos



Em cartaz nos cinemas de São Paulo ao lado de Jessica Chastain em A Grande Jogada, o inglês Idris Elba causou nesta quinta-feira, 22, na Berlinale um rebuliço que nenhum medalhão americano de Hollywood aqui presente chegou perto de provocar: tinha fã-clube carregando faixas escritas “We love you, Idris” na frente dos cinemas onde seu primeiro longa-metragem como diretor, Yardie, está sendo exibido.

Há uma semana, a eletrizante versão dele para o romance de Victor Headley teve uma primeira projeção no festival alemão, deixando evidente a influência estética de Cidade de Deus sobre seu modo de filmar.

Esperava-se que ele estivesse aqui no dia (sexta passada), mas compromissos com a teledramaturgia (ele protagoniza a série Luther, hoje no menu da Netflix; e prepara In The Long Run para a Sky 1, da Inglaterra) atrasaram sua chegada, o que deixou o público alemão jururu com sua ausência.

Agora a cidade vai às forras, num sinal da alta popularidade desse britânico de 45 anos de descendência africana (seu pai é de Serra Leoa; a mãe, de Gana). Ele virou um símbolo político na discussão da representatividade negra no audiovisual.

“Eu dirigi um filme com jovens que são negros, mas busquei uma questão universal que vai além da cor: a aprendizagem para se lidar com um trauma. Não defino o cinema por cor da pele e sim pela força das histórias que eu desejo contar. Meu pai morreu há pouco tempo, quando eu tinha acabado de me mudar pros Estados Unidos, para filmar lá, e a perda dele me fez quer ser mais do que um ator correndo atrás de cachês. Sou um artista que quer contar histórias que expressem valores importantes pra mim”, disse Elba ao Estadão, elogiando publicamente o cult de Fernando Meirelles sobre o conjunto habitacional carioca formado no fim dos anos 1960.

Dali veio a base visual de Yardie, cuja trama gravita entre a Jamaica de 1973 e os submundos da Londres de 1983, conforme acompanha o processo de amadurecimento de D. (Aml Ameen), um traficante que busca no crime meios de se vingar da morte de seu irmão.

Cidade de Deus ensinou ao mundo o que é autenticidade: aqueles rapazes e moças espelham aquele local, aquela realidade, e transportam a gente pra lá… praí pro seu país… a partir da humanidade que transbordam. Tentei seguir esse caminho”, admite Elba, que exibiu o longa em Sundance, em janeiro, antes de entrar na mostra Panorama de Berlim.

“Meu maior cuidado aqui era fazer com o que os jamaicanos que vissem o filme sentissem familiaridade com o que estavam vendo. E olha que é duro prum britânico lidar com o sotaque do inglês da Jamaica. Pedia sempre que os atores fizessem cada cena duas vezes. A primeira era falada do jeito que eles falam lá. Na segunda, eu buscava uma pronúncia do inglês menos regional. Dava uma ‘inglesada’ na coisa”.

Ao longo de cenas de perseguição e tiroteio que impactaram a Berlinale pelo uso de cores saturadas, exacerbando o colorido, Yardie mostra tradições religiosas da Jamaica ao registrar os confrontos de D. com o fantasma de seu irmão morto. O espírito de seu mano mais velho vai segui-lo pelas confusões que ele se mete com um chefão do tráfico na Inglaterra e com sua namoradinha, hoje uma cristã fervorosa, Yvonne, vivida por Shantol Jackson.

“Toda a vida de D. se passa em ambientes muito masculinos. Eu precisava ter cuidado de não descuidar da representação do feminino. E, como as regiões de periferia da Jamaica, de onde D. vem, são recheadas por mulheres muito fortes e guerreiras, quis trazer uma personagem de lá, para nortear seu caminho”, diz Elba, cotado para ser o primeiro James Bond negro do cinema, substituindo Daniel Craig num futuro 007.

Esta é uma aposta antiga dos fãs do agente secreto nº1 de Sua Majestade, pois os bondmaníacos enxergam na escolha de Elba para o papel de Bond uma necessária evolução para o personagem de Ian Flemming.

Mas, como bom cavalheiro inglês que é, o ator de longas aclamados como Beasts Of No Nation (2015) não toca no assunto, afirmando seu apreço por uma vida dupla, entre atuar e dirigir. “Foi muito rica essa experiência de Yardie pela produção independente, na Inglaterra, mas isso não tira meu interesse por trabalhar em Hollywood. De onde vierem as boas histórias… e as fontes de financiamento… elas serão bem aceitas”, diz Elba, com curiosidade por filmar no Brasil. “O impacto que Cidade de Deus teve no meu olhar foi grande. Espero um dia estar aí.”

Chovem resenhas positivas acerca de Yardie, mas a imprensa inglesa reclama do fato de Elba não bancar sua dimensão de filme de gênero, apostando mais na discussão social da trama do que em sua linha policialesca.

“Não me importo que haja uma impressão divergente ao filme. Divergências enriquecem. Eu não faço filmes pra crítica. Aliás, em 30 anos de carreira como ator, eu não leio resenhas sobre o meu trabalho, embora tenha absoluto respeito pelo papel dos críticos. Eles falam pra públicos que não são do meio. Mas uma crítica dura pode tirar de um ator inexperiente a retidão para seguir em frente”, diz o ator. “Uma crítica não vai orientar a maneira como eu faço um filme. Ela só é um ponto de vista. Mas existe, antes de tudo, o meu desejo de narrar.”

Nesta quinta, a briga pelo Urso de Ouro de 2018 na Berlinale recebeu um peso pesado do México que, sem gerar qualquer expectativa, tomou a competição de assalto por sua engenharia de roteiro avessa a qualquer previsibilidade: Museo, o segundo longa de Alonso Ruizpalacios (de Güeros).

Quem acreditava que Joaquin Phoenix não teria rival à sua altura na disputa pelo prêmio de melhor ator, por seu tocante desempenho em Don’t Worry, He Won’t Get Far On Foot, de Gus Van Sant (o favorito dos favoritos da disputa), caiu pra trás ao ver o que Gael García Bernal é capaz de fazer filmando em seu próprio país, com base em fatos reais. Desde Diários de Motocicleta (2004), no qual viveu o Che Guevara de Walter Salles, o galã mexicano não surpreendia tanto a plateia. Ele injeta humor e um charme blasé à figura do jovem Juan, funcionário do Museu Nacional de Antropologia, na Cidade do México, que na noite de Natal de 1985, resolve roubar artefatos raros de civilizações ameríndias para vendê-los no mercado negro, em Acapulco. Mas não há maldade nem real cobiça em suas ações, apenas vazio existencial. Só que o crime entrou para os anais policiais da América Latina.

“O aspecto mais espantoso e, de certa forma frustrante, da história deste roubo, é que foi uma aventura de dois jovens sem a menor noção do que estavam fazendo e não um elaborado plano de uma quadrilha armada”, explicou Ruizpalacios, que evoca a memória do cinema B do México e da TV de seu país em uma discussão sobre valores nacionais capaz de incluir até menção ao programa humorístico Chaves.

“Como os parentes dos envolvidos no roubo não quiseram se envolver no filme, tivemos licença para criar Juan com total liberdade e, a partir de suas crenças sobre os valores típicos de sua pátria, inclusive as estaturas ameríndias, ele nos abre precedente para debater identidade nacional”, disse o diretor.

Ausente no início da coletiva de imprensa do filme, por atrasos em seu voo Los Angeles x Berlim, Gael chegou esbaforido no meio da entrevista, surpreendendo a todos. “Há memórias do México dos anos 1980 que não me saem da cabeça, como o terremoto que nos assolou. Mas esse roubo do museu é um folclore que só descobri mais adulto, mas me fascinou”, disse o astro, hoje ligado à série Mozart in The Jungle.

Faltam dois filmes para encerrar a seleta da mostra competitiva da Berlinale 2018, e ambos estão agendados para esta sexta: Mug, de Malgorzata Szumowska (Polônia), e In The Aisles, de Thomas Stuber (Alemanha), que tem como protagonista “a” estrela germânica do momento, Sandra Huller, de Toni Erdmann (2016).

A entrega do Urso de Ouro será realizada neste sábado, 24, pelas mãos do júri presidido pelo cineasta Tom Tykwer, fechando o festival, sendo que uma das premiações paralelas, o Prêmio da Crítica, votado pela Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci) será presidida por um brasileiro, o jornalista Mario Abbade.

Fora da competição, esta sexta no festival vai ser sacudida pelo documentário musical Songwriter, do inglês Murray Cummings, que trará o cantor e compositor Ed Sheeran à cidade.



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