Cultura
Carlos Antônio Aranha de Macedo – ou simplesmente Carlos Aranha – um artista militante na Imprensa paraibana, por Chico Pereira
30/01/2025
Por Chico Pereira, artista plástico, produtor cultural e acadêmico da APL em pronunciamento na academia
Não me lembro com exatidão quando conheci Carlos Aranha. Situo, no entanto, por volta dos meados dos anos de 1960, quando comecei a me integrar aos movimentos da vanguarda cultural e artística paraibana, que transitava entre o antigo Departamento Cultural da UFPB, no Teatro Santa Rosa e na Churrascaria Bambu, esta, naquela época,sede informal da boemia política e cultural da Capital Paraibana.
Mas tenho a vaga lembrança que foi em maio de 1965, por conta do Festival Bossa I, um espetáculo musical coordenado pelo pernambucano Jomard Muniz de Brito, apresentado no Teatro Municipal Severino Cabral, em Campina Grande, oportunidade em que eu estava expondono hall desse teatro minha primeira mostra individual. O show musical, com cenário de Anacleto Eloi de Almeida, tinha no seu elenco o percursionista Naná Vasconcelos, a Cantora Pernambucana Tereza Calazans e o pianista campinense Gabimar Fernandes.
Um ônibus fretado trazia para Campina nesta noite artistas, jornalistas e intelectuais de Recife e João Pessoa, muitos dos quais viriam participar mais à frente do movimento tropicalista. Conhecia alguns deles através da imprensa pernambucana e paraibana, notadamente o que se publicava no Correio das Artes, suplemento do jornal A União, que servia de ponte cultural entre os Estados de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, e de forma mais esporádica com outros Estados, a exemplo do eixo Rio x São Paulo. Foi nessa ocasião que conheci o artista plástico Raul Córdula Filho, que viria ser no futuro um grande companheiro de aventuras culturais e artísticas. É dessa ocasião que acredito ter conhecido Carlos Aranha, considerando que nessa comitiva praticamente não faltava ninguém da chamada vanguarda pessoense.
Neste momento salto dessas descrições para focar mais diretamente na figura desse amigo que partiu, e que durante mais de cinquenta anos foi uma companhia permanente de ideias, atitudes, tomadas de posições políticas e compromissos profissionais, tamanha a sua versatilidade como jornalista, publicitário, editor, produtor artístico, entre tantas outras habilidades que incluíam, também, funções públicas em diferentes ocasiões. Tudo isto que contribuiu para formatar uma permanente e inquietante militância cultural sem fronteiras entre o Aranha das artes e o Aranha dedicado à causa pública, incluindo aí sua passagem pelo rádio.
Essa diversificada atividade pode ter contribuído para que Carlos Aranha nunca se assentasse por muito tempo numa só direção, num destino profissional consistente que pudesse colaborar para um sucesso e um reconhecimento numa determinada e duradoura atividade, já que ânimo e domínio dessas diferentes áreas que ele assumia muito bem conhecia e não o amedrontavam.
Mas era no jornalismo que Carlos Aranha mantinha seu prumo, desde quando muito jovem ingressou no jornalismo, como muitos da era gloriosa que era a imprensa antes da chegada da exigência do diploma, e depois do golpe mortal da era da Internet, degolando o jornal impresso, objeto mágico do culto fetichista da velha imprensa que Aranha conhecia nos seus mais recônditos mistérios, do foca ao redator, da revisão à impressora, do esporte à política, até do horóscopo que ele não só redigia mais acreditava.
É neste território do jornal impresso que Aranha deixou não só o seu legado mais a sua vida. Fez de tudo no jornal. Ou melhor: nos jornais porque transitou em todos. Não foi permanente num assunto porque exerceu todas as funções. Só não foi proprietário porque nunca teve vocação empresarial mais fez de tudo, da reportagem a funções técnicas e administrativas. Levante-se uma memória descritiva jornalística e funcional da imprensa paraibana localizada na Capital nos últimos 60 anos e lá estará Carlos Aranha nominalmente citado ano a ano, mês a mês, dia a dia, seja nos expedientes ou nas colunas assinadas, sem contar o anonimato tão comum no jornal impresso.
Mas é no jornalismo cultural que Aranha deixa a sua assinatura, especialmente naquilo que ele mais entendia que era a música. Músico por formação clássica, estudante que foi de piano, mas se dedicando ao violão e à guitarra, abduzido que foi pelo rock, cuja vocação poética naturalmente levou-o a juntar-se ao movimento das bandas e dos festivais de música popular que invadiram o país naqueles anos dourados da MPB, da Jovem Guarda, das influências dos Beatles, dos Rollings Stones, Woodstock e mais tarde da Tropicália, movimento que Aranha veio ser arauto na Paraíba. Participou de todos esses movimentos, como autor e intérprete, organizador e membro de júri. Tudo isso contribuiu para uma consciência e uma conhecimento da música popular, transformado em artigos e noticiário na imprensa local, influenciando gerações e dando norte a muita gente que hoje brilha no panorama nacional.
Como apreciador da música popular brasileira, mas não tendo expertise no assunto, tento enxergar e compreender esse fenômeno de forma muito reservada. Mas vejo na música de Aranha uma dimensão, uma qualidade poética e um domínio musical, que apesar de diminuta é de extrema grandeza; e caso tivesse se dedicado com afinco estaria no Panteão nacional ao lado das grandes expressões do passado e do presente. “Sociedade dos Poetas Putos”é, sem dúvida (para mim, pelo menos), uma obra singular no panorama da MPB brasileira. Quem viver verá um dia esta afirmação.
Merece aqui um registro especial a sua participação no movimento tropicalista, que teve no Nordeste a figura de Jomard Muniz de Brito como carro chefe. Através de Carlos Aranha a Paraíba está diretamente envolvida nesse processo, seja na redação do documento “Inventário do Feudalismo Cultural no Nordeste”, seja da sua participação no encontro acontecido em Recife com as presenças de Gilberto Gil e Caetano Veloso, entre outros, e dos paraibanos Raul Córdula e Marcus Vinicius de Andrade, Aranha contribuindo ao longo do tempo com mais de 50 artigos publicados na imprensa local, merecedor de publicação em livro.
Mas não é só na música que perpassa a ação do jornalismo cultural de Aranha. O Teatro e o Cinema mereceram, durante anos, sua atenção. Certamente sua proximidade com o palco, seja como autor, diretor e ator, grande parte restrita ao Teatro Santa Rosa, e no cinema, uma vocação paraibana desde os anos de 1960 também o contaminou. Daí suas incursões na tentativa de fazer um cinema pessoal, quase amador, mas identificado com as influências do Neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa. Ou, possivelmente, do cinema paraibano de Linduarte Noronha e Vladimir de Carvalho naquela época fazendo escola.
Mas não quero aqui me alongar sobre seus feitos. Isto já foi feito quando do seu ingresso nesta academia de letras. Este momento é de pura nostalgia, de saudade e de certa forma de despedida formal como exige o ritual da instituição. Coube-me aceitar o convite do Presidente desta casa, acadêmico Ramalho Leite, para fazer esta oração, já que todos aqui sabem da minha velha e permanente amizade fraternal e irmanada com o inesquecível Carlos Aranha.
Conheci-o, e bem de perto. Convivi com Aranha muitos momentos de alegrias e de tristezas, como tantos dos nossos companheiros que também o conheceram tão próximos quanto eu, alguns bem mais remotamente. Mas de certa forma Aranha me escolheu entre tantos para ser um confidente. Ou talvez melhor: um confessionário onde ele depositava suas angústias, suas intimidades e seus projetos. Muitas confissões e desabafos que ele sabia que jamais passariam das nossas conversas, grande parte reveladas – ou confessadas – a base de muito whiski, sua bebida predileta.
Às vezes passávamos tempos distantes, outras vezes mais próximos. Tempos e circunstâncias que variavam conforme nossas atividades ou de lugares onde estávamos. Mas creio que o fim do jornalismo impresso contribuiu para desagregar um estilo de vida que juntava pessoas que transitavam na impressa de forma direta, ou tangencial como era o meu caso que nunca tive uma militância intensiva. Outro fator, acredito, foi o deslocamento da cidade histórica para o litoral e para os novos bairros, contribuindo para a desagregação dos tradicionais pontos de encontros e das consagradas formas de socialização.
Vivemos muitas experiências de trabalhos, algumas inusitadas, como uma viagem que fizemos a Salvador em 1984, para participar da abertura de uma exposição de artistas paraibanos, por mim organizada, exposta no Museu de Arte Moderna da Bahia, com o patrocínio da Funjope, a fundação de cultura da Prefeitura de João Pessoa, cujo administração estava sob o comando de Aranha.
Pois bem! Nos deslocamos para o aeroporto de Recife, para embarcar numa viagem com um voo previsto para chegar em Salvador às 19 horas, tempo suficiente para estarmos na abertura da exposição, marcada para às 20 horas. O avião que nos transportava era um Boeing 737 -200 da Vasp, o top da época, que ao chegar ao céu da Capital baiana topou com uma tempestade de chuva e ventos, voando em círculo por mais de uma hora sobre a cidade, tentando por duas vezes pousar no aeroporto sem sucesso. Na terceira tentativa, quase tocando o solo, arrematou de volta a Recife, tamanha era a quantidade de água na cabeceira da pista. Ao microfone o comandante da aeronave explicou a situação que passamos e avisou estar naquele momento liberando o serviço de bar a bordo. Enchemos a cara de Whisk para poder voltar ao normal, já que se torna desnecessário comentar o medo que vivenciamos.
Chegando aos Guararapes, desembarcamos para aguardar retomar o mesmo voo naquela noite quando a situação sobre Salvador melhorasse. Fomos direto ao bar do aeroporto para reforçar a nossa coragem de voltar ao avião. Por volta das duas da madrugada reembarcamos, os dois e menos da metade dos passageiros que decidiram voltar para o mesmo avião. Chegando em Salvador encontramos a cidade em completa escuridão, tamanho o estrago da tempestade. Tinha sido uma catástrofe aquele momento em que estivemos voando em círculos sobre a Capital baiana. Chegamos ao hotel o dia quase amanhecendo, exaustos e com fome. O café da manhã seria servido a partir das seis horas. Por sugestão de Aranha deixamos a bagagem na portaria e fomos direto ao Farol da Barra, já que era perto do hotel, sentar na grama vendo a Bahia de Todos os Santos, o Forte de São Marcelo e poder relembrar os dias em que Salvador e aquele local era o ponto de encontro nacional dos hippies que cada um tentamos ser em algum momento de nossas vidas.
Episódios como este tivemos vários, alguns envolvendo diferentes amigos e inusitadas histórias, cada uma atravessando o círculo das nossas vivências e experiências de trabalho, de encontro casuais ou acidentais, até quando novas formas de relações profissionais, de lugares e de contatos foram passando por mutações. E quando as vidas privadas também foram mudando de direções, cada um adaptando-se ou desaparecendo para lugares distintos, alguns partindo precocemente.
Não que Aranha não acompanhasse essa virada, não abdicara do celular, como muito bem soube se adaptar também às novas formas da tecnologia da comunicação do jornal e pessoal. Foram outros acontecimentos que o atingiram no corpo e na alma. Coisas do imponderável. Se pudesse romancear diria – coisas do destino, do diabo na rua no meio do redemoinho – como diria Riobaldo sobre suas tragédias pessoais. Nunca faltou a Carlos Aranha a noção exata da sua fragilidade. Muitas vezes confessou-me a dimensão dos seus problemas. Sabia, e sabia como superar suas dores, materiais e espirituais. Mas estava perdendo a batalha. Até que um dia foi tragado pelo ladosombrio da existência, lugar impenetrável, privativo onde só cabe uma mente um só corpo. E esta foi a sua esfinge sem tempo de ser decifrada.
Lembrei-me de muitas conversas, às vezes inusitadas sobre suas crenças em mundos paralelos que ele se comunicava com pessoas, que talvez de fato existissem. Com a sua inteligência e sua cultura nunca discordei dessas misteriosas relações. Nunca me confessou algum crédito religioso, mas sempre falava de esoterismo como um conhecimento alquímico do espírito. Talvez nesse campo encontrava seu lugar no cosmos.
Nos últimos meses antes da sua partida surpreendi-me com sua presença num lançamento de livro na Livraria do Luiz, no MAG Shopping. Chegou de surpresa já que todos sabíamos dos seus problemas de saúde. Estava lúcido. Tivemos rápida conversa e ele foi embora. Dias depois surgiram complicações que o levaram a ser internadonuma residência para idosos ou pessoas que precisam de cuidados especiais. Passamos a visita-lo com outros membros desta academia algumas vezes e percebíamos nele momentos de lucidez e de divagações. Sabíamos da sua realidade e sofremos com isto. Mas estava fora donosso alcance providências mais confortáveis ou amparo terapêutico mais efetivo do que já recebia.
Mas é que chega hora da partida. Vi-o pela última já sem vida na sala de entrada da Academia à véspera do seu funeral.
Quase ninguém nessa despedida. No jardim, à sombra de Augusto dos Anjos, seu poeta imortal, seus poucos familiares. Ele que conviveu com o público festivo e com tanta gente ali estava quase sozinho.
Voltei para me despedir do amigo. Uma última visão. O corpo inerte estava sereno e até rejuvenescido pela fria maquiagem funerária. Vivera intensamente suas tragédias, alegrias e tristezas. Não estavam mais ali seu espírito e sua alma. Talvez estejam flanando no universo imaginário que tantas vezes me falou.
Somos assim. Chegamos aqui por um mistério e para lá voltamos. A vida é o trânsito existencial entre vir e partir.
Vai lá Aranha. Se voltares sejas o mesmo, pois é assim que estaremos aqui lembrando sua maneira singular de ser.
. Chico Pereira (Francisco Pereira da Silva Junior- Acadêmico – cadeira n15)
João Pessoa, 29 de janeiro de 2025.
Os comentários a seguir são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site.