Política

Anistias na República Velha: um mecanismo de pacificação entre rupturas e alianças


22/05/2025

Reprodução / República Velha

Paulo Nascimento

Durante a República Velha (1889–1930), o Brasil enfrentou uma série de revoltas que testaram os limites da autoridade do recém-instalado regime republicano. Em meio à instabilidade, o instrumento da anistia emergiu como uma resposta ambígua do Estado: ora conciliadora, ora repressiva. A concessão do perdão legal aos revoltosos, no entanto, nunca foi neutra, refletia pactos de bastidores, pressões militares, tensões sociais e arranjos entre elites.

Para o historiador Flávio Lúcio, a anistia foi historicamente um recurso de articulação política usado sobretudo por e entre membros da elite. “Mesmo antes da Independência, as anistias eram aplicadas em movimentos que envolviam figuras das classes dominantes. A exceção, como no caso de Tiradentes, foi mais simbólica e excepcional”, afirma.

Revolta da Armada e Revolução Federalista: anistia sob punição

Um dos primeiros episódios marcantes do uso político da anistia ocorreu durante o governo de Floriano Peixoto. A Revolta da Armada (1893) e a Revolução Federalista (1893–1895) desafiaram diretamente o poder central. Em 1895, o Decreto nº 310 concedeu anistia aos envolvidos, mas com cláusulas que restringiam seus direitos, o que levou o jurista Ruy Barbosa a qualificá-la como “anistia inversa”, por penalizar os anistiados em vez de perdoá-los.

Segundo Flávio Lúcio, esse momento reflete uma transição conturbada. “Era o início da consolidação republicana, e o Exército começava a emergir como força política dominante, herdando o papel moderador do Império”, analisa.

Revolta da Vacina: perdão e reconciliação

Em 1904, a imposição da vacinação obrigatória gerou a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro. A repressão foi severa, mas, em 1905, os envolvidos foram anistiados pelo Decreto nº 1.373. Ruy Barbosa, defensor da medida, enxergava a anistia como um gesto de reconciliação e esquecimento do conflito.

“A revolta foi um reflexo das tensões de uma sociedade em urbanização, onde a população urbana crescia e começava a demandar novos direitos”, contextualiza o historiador.

Revolta da Chibata: promessa não cumprida

A Revolta da Chibata (1910), liderada pelo marinheiro João Cândido Felisberto, escancarou o racismo e a violência nos quartéis. Apesar da promessa de anistia feita pelo governo, a repressão prevaleceu: marinheiros foram presos, expulsos ou assassinados. A reparação oficial só veio em 2008, com a concessão da anistia post mortem aos líderes do movimento.

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“Essa revolta evidencia o tratamento desigual dispensado aos setores populares, sobretudo negros. Era uma insurreição contra a herança escravocrata mantida nas Forças Armadas”, destaca Flávio Lúcio.

Revoltas Tenentistas: do levante à integração no poder

A década de 1920 foi marcada pelas revoltas tenentistas, como a dos 18 do Forte (1922) e a Revolta Paulista (1924). Jovens oficiais do Exército exigiam reformas políticas. Após a Revolução de 1930, Getúlio Vargas anistiou os tenentistas e os integrou ao novo governo, consolidando sua base de poder.

“Vargas anistiou os que marcharam com ele. Era uma forma de institucionalizar o novo arranjo político. Muitos dos que se rebelaram contra a oligarquia se tornaram base de sustentação do Estado Novo”, explica o historiador.

Um padrão histórico: pactos e acomodações

A análise de Flávio Lúcio mostra que a anistia, historicamente, foi um instrumento moldado por pressões políticas e econômicas. “O Brasil sempre preferiu os pactos às rupturas. As anistias foram, em sua maioria, articuladas para evitar que as crises levassem a um ponto sem retorno. Sempre com alguma elite por trás”, afirma.

Ele também destaca que, na República Velha, o país vivia uma modernização capitalista desigual. “O modelo econômico favorecia as elites agrárias, enquanto a urbanização gerava novas demandas sociais, aumentando as tensões que explodiram nas revoltas”, analisa.

Paralelo com a contemporaneidade

Flávio Lúcio ainda compara o uso da anistia no passado com os debates atuais. “Hoje, fala-se em anistia para os envolvidos nos atos de 8 de janeiro. Mas, como antes, quem está sendo punido são os ‘peixes pequenos’. Os articuladores e financiadores continuam nos bastidores. A anistia, nesse caso, interessa mais a eles do que aos executores”, avalia.

As anistias da República Velha não foram meros atos de clemência, foram peças estratégicas no tabuleiro da política brasileira. Usadas para conter crises, recompor alianças e evitar rupturas, refletiram um país em busca de estabilidade sob a sombra constante da desigualdade social e do autoritarismo. Como observa Flávio Lúcio, “a anistia, no Brasil, sempre foi uma forma de acomodar o poder, nunca de democratizá-lo por completo”.

 



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