Rui Leitão

Jornalista e escritor.

Geral

Carta para Arthur


03/07/2017

Foto: autor desconhecido.

 

Minha primeira declaração é no sentido de lhe pedir desculpas em nome da sociedade brasileira contemporânea. Você vivia os últimos dias no ventre de sua mãe, na expectativa de conhecer o mundo exterior. Não tinha sequer noção do que iria enfrentar a partir da data do seu nascimento natural. Mas seus pais o esperavam com alegria e desejosos de lhe ofertar uma vida plena de felicidades. Os planos, certamente, eram muitos.

De repente tudo isso foi violentamente alterado. Você ainda nem respirava o ar do mundo em que vivemos e já era vitimado pela brutalidade das relações humanas que estamos construindo. Uma bala perdida foi ao encontro do seu corpo, hipoteticamente protegido pelo ventre materno, e lhe condenou a viver sem os movimentos das pernas e das mãos. É um acontecimento que em tempos pretéritos seria difícil acreditar fosse possível. Entretanto, essa é uma assustadora realidade que nos é oferecida.

Estamos envergonhados Arthur. Lamentamos, profundamente, que a sua recepção ao nosso mundo tenha sido dessa forma. Ao invés de festejarmos sua chegada, como seria normal, estamos atordoados com a hostilidade com que você foi recebido. Sequer teve o direito de dar o primeiro vagido ao nascer, anunciando sua presença entre nós. Foi logo sendo encaminhado para um hospital, na tentativa desesperada de, pelo menos, salvar sua vida.

Não basta somente que nos indignemos com tamanha selvageria de que você foi vítima. O medo que toma conta de cada um de nós deve ser o elemento de estímulo a que tomemos consciência de que estamos perdendo a noção do que seja convivência fraterna entre os homens. Não há mais respeito pela vida humana. É preciso que nos sirvamos do seu exemplo para analisar o estágio de selvageria a que estamos sendo submetidos. Estamos nos tornando seres insensíveis e agressivos. Enquanto as vítimas eram pessoas já oficialmente nascidas, nos resignamos a aceitar esses fatos criminosos como se fossem algo banal, o que por si só já se configura uma anormalidade de compreensão humana. As balas estão cruzando nosso caminho sem necessariamente estarem dirigidas para nos atingir. A cada momento somos informados da existência de mártires da violência urbana, sacrificados inocentemente.

Arthur, você, na agonia de um berço de hospital, lutando para sobreviver, nos convoca a reagir para que outros em situação igual à sua, não sejam surpreendidos por uma bala assassina, vinda ninguém sabe de onde, nem quem a disparou, tenha ceifado prematuramente o direito de viver.

Perdoe-nos Arthur por nossa incapacidade de evitar que você tenha passado por esse infausto acontecimento. Somos todos responsáveis por isso, porquanto nos mantivemos até agora inertes, passivos, apáticos, diante dessa barbárie. Só nos resta, além do pedido de perdão, elevarmos nossas preces a Deus rogando que lhe dê a graça de viver, embora tetraplégico, e pressionarmos as autoridades públicas a buscarem urgentemente uma forma de coibir o comportamento brutal da humanidade que vem se tornando um fato normal no nosso cotidiano.

• Arthur é o garoto vitimado por uma bala perdida, ainda no ventre de sua mâe, que é paraibana, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro.
 


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