Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

D- Eficientes


26/09/2016

Foto: autor desconhecido.

Para aqueles que , com todas as limitações do corpo ou do cérebro, todos os dias nos mostram que o céu é o limite!

Sou de um tempo em que não se via as pessoas deficientes. Elas estavam todas escondidas. As famílias se envergonhavam. Fosse um simples defeito no andar, ou nas mais graves limitações. Paralisia cerebral então? ficavam à sete chaves. Os deficientes eram pessoas assim com um prefixo na frente e que, por ordem do destino tinham nascido defeituosos e por conseguinte teriam que viver às margens. E não era somente porque eram diferentes, mas também porque não podiam fazer coisas, limitações do corpo. Aí precisavam da compaixão dos outros para comer, vestir, e fazer as coisas do cotidiano. Ter um filho deficiente também era uma frustração não dita. Sofrida. Escritores como Cristóvão Tezza (O filho eterno), Diogo Mainard (A Queda), e mais recentemente Olivia Byington e seu relato em “O que é que ele tem”, falam com autoridade e ambiguidade de sentimentos sobre o assunto.

Também nunca convivi com ninguém com problemas assim, ou numa cadeira de rodas. No meu colégio de criança não tinha. Na minha adolescência tão pouco. E na vida adulta nem tanto. Uma ou outra família tinha o seu exemplo, e aí se instalava um silêncio de algo “anormal” que não era mostrado nem vivido.. Uma vergonha silenciosa. Um silêncio nada eloquente. E um dia, aquela pessoa morria nesse não existir, com o que a sua vida tinha sido. Era uma tristeza mesmo.

Na minha ignorância, sempre achei os deficientes, deficientes – com toda a minha compaixão. Só muito recentemente, com os jogos paralímpicos e toda a conscientização da inclusão é que começo (confesso que começo!) a perceber como somos primitivos no conhecimento de ver que, esses gigantes fazem tudo e mais do que nós pobres mortais. E como tantos, fiquei atônita de ver o quão longe pode ir um ser humano. Pular alturas, nadar sem as pernas, jogar sem enxergar a bola, correr sentado, vendas nos olhos e todas as tecnologias que completam os membros amputados. Um neurologista disse que mesmo com a prótese, o portador sente o seu pé molhado. Que maravilha que é o nosso cérebro!

Uma vez, assisti a um filme, Gaby, uma estória verdadeira (1987), dirigido por Luis Mandoki e estrelado por Liv Ullman e Norma Aleandro (O filho da Noiva), que contava a estória de Gaby, uma mulher deficiente, e toda a sua vida, inclusive amorosa. Gaby se apaixona por um homem igualmente limitado, e os dois vivenciam paixão, amor e sexo. Muito sexo. Cenas que misturavam o grotesco e o sublime, com aquelas duas criaturas dis-formes, pesadas, e loucas, a rolarem pelo chão em busca do desejo e do gozo. Saí do cinema perplexa e pela primeira vez, vi que as pessoas de-ficientes tinham vida e mais vida para viver. Em todas as suas complexidades e plenitudes.

Anos mais tarde conheci Derly Pereira, nosso primeiro vereador que o PT elegeu, com seu filho cadeirante. E me enternecia vê-lo incluído com todos nós nas campanhas políticas, no shopping, restaurantes, como um mortal cidadão participando da vida política da cidade. E não só. Não era de fácil locomoção , mas era de direito que participasse da vida. Nossa sociedade só tem olhos para os do Centro, seja lá que Centro seja esse. Mas as pessoas deficientes no nosso habitat tem que tocar um dobrado, em mobilidade e acessibilidade. Lembro que, quando morei fora do país, nos anos 70 e 80, sempre me chamava atenção o símbolo dos deficientes em todas as ruas, praças, órgãos públicos. E eu, tão ignorante, não sabia nada daquela vida. Ensimesmada nos meus braços e pernas.

Outra vez, conheci um menino lindo e cadeirante. E nos seus dois anos, um dia, entrei na casa do seu avô, Dr. Arnaldo Tavares, e me deparei com uma cena que me marcou durante muito tempo. Pedro Tavares, dançava a música da Xuxa, se arrastando no chão, como a sua condição permitia. Ele, entregue ao ritmo da música, deixava o seu sentir ultrapassar a concretude de uma perna e se deliciava no assoalho. Eu, que achava a dança só para os que tinham suas pernas no lugar, saí do conforto desse lugar literalmente, e percebi a quantos lugares podemos ir. Hoje, Pedro é dançarino de cadeirante. Dá show! E baila vida afora.

Almodóvar me mostrou cadeirantes jogando basquete, Carne Trêmula, com Javier Bardem fazendo o jogador. E passei o filme me tremendo com tantas sensações novas. E me permitindo imaginar. Depois, o mesmo Javier em Mar Adentro, nos mostrava que para imaginar , basta que tenhamos a imaginação e essa Louca da Casa que nos tira de qualquer paralisia. Uma janela se abre, e podemos ganhar os mundos. Ou os mares!

E last but not least, conheci Cida Ramos , candidata à prefeitura de João Pessoa. Conheço Cida há pelo menos a idade do meu filho Daniel. 25 anos! A primeira vez que a vi, também me assustei ao vê-la mais ágil e participativa que eu. Com as suas muletas, Cida pinotava pela vida mais que muitos. Literalmente. Depois vi-a com seu amado – Jaldes! Mais um susto. Eu, como minhas exigências cinematográficas e românticas, ao ver um casal assim diferente do comum. Passei a admirar aquele homem que, ao contrário das regras machistas que imperam que as loiras é que são mulheres lindas; que as gostosas é que tem a vez; Jaldes se entrelaçava com alguém que fugia de todos os padrões. Mas eles formavam/am um casal bonito, engajado, companheiros, e amorosos, pois com aquela felicidade de Cida, ela tem sim que ser feliz no amor. Aí vejo Cida Grávida das meninas. Como pode? Como vai trocar fralda, mamadeira? Como vai se irritar com as filhas? Carregar no braço? Balançar na rede? Ensinar a andar? E quando olho, as filhas estão moças lindas; Cida foi fazer doutorado sozinha no Rio de Janeiro! E como se nada bastasse , se candidata à prefeitura de João pessoa, enfrentando uma campanha eleitoral, que eu conheço na palma da mão, e bem sei a guerra que é. Em todos os sentidos. Sem falar nas caminhadas, carreatas, mano a mano, panfletos, falas, entrevistas, comícios, etc. E se ganhar? Virar essa cidade de cabo a rabo, ouvir todas as críticas e reclamações, tentar por em prática o que planejou na campanha? Cida valente, com uma visibilidade forte, vida plena, realizada e na luta por um mundo melhor.

Fico muito feliz de ver que o mundo melhorou tanto nesse sentido. E em outros também.

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa, 21 de setembro, 2016

 


 


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