Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

Julieta


30/08/2016

Foto: autor desconhecido.

Este texto foi publicado no Correio das Artes – A União, 28/08/2016

There is no agony like bearing an untold story inside you (Não existe agonia maior que uma estória não contada .(Zora Neale Hurston)

O filme, Julieta, do cineasta espanhol, Pedro Almodóvar, foi recebido com críticas por ser melodrama e fugir dos modelos dos seus filmes anteriores, tais como Tudo sobre minha mãe, A pele que habito, Fale com Ela. Mas desde a abertura do filme que já se estabelece um filme Almodovariano. Um tecido de cor vermelho sangue pulsa, e esse tecido, tem a forma de uma vagina com seus grandes lábios que latejam, não sabendo se de desejo ou se de dor. Ambos talvez? Em seguida percebemos que se trata do robe de Julieta, personagem principal do filme. Aliás Julieta veste vermelho, preto, bege, e um outro robe com desenhos geométricos luminosos que lembram o pintor Klimt. Cores e Formas sejam lineares ou plasmadas, são sim da palheta desse cineasta exagerado e que sempre flerta com os temas das mulheres. Nesse caso, a relação mãe e filha, tema tão caro às mulheres e suas complexidades.

Loss – an emptiness, filled with terrifying feelings, burning hate, sizzling despair, rage that tears you apart. (Perda – um vazio, preenchido com sentimentos avassaladores, ódio flamejante, desespero ardente em fogo vivo, ira que rasga você por dentro.

Almodóvar escolheu três contos do livro Fugitiva, da escritora canadense Alice Munro, publicado em 2004 e lançado no Brasil em 2006, para construir a trama de Julieta. Os contos “Ocasião”, “Daqui a Pouco” e “Silêncio”, apresentam três momentos distintos na vida de uma única personagem, Juliet, que no filme o diretor rebatiza com a versão latina do nome, trocando também o cenário gélido dos contos pela ensolarada paisagem mediterrânea. Julieta é um filme sobre o tão complexo sentimento da maternidade, e todos os seus percalços. Mas um deles se impondo: A Culpa! Sentimento esse que as mães carregam no peito, como se tivessem que expurga-la em busca de uma mãe que nunca conseguimos ser. Julieta então tem mais razões que nós mães pobres mortais. Ela tem a concretude do abandono da filha que, para expurgar sua própria culpa, só encontra na partida, na fuga, a sua libertação da mãe e da dor da perda do pai.

Mother nature – has been confounded with women throughout our civilization (A natureza do ser mãe, tem sido confundida com as próprias mulheres através da nossa civilização)
Guilt – is not a feeling. It is an intellectual mask to a feeling. A brainswashing processe. (Culpa – não é um sentimento. É uma mascara intelectual para um sentimento. Um processo de lavagem cerebral.

Julieta conta essa estória sofrida de uma mãe que perdeu contato com a filha adolescente, Antía, e passa a viver em função dessa ausência e dessa angústia. Um segredo que vai atormentar-lhe à vida, não importando o que faça, nem mesmo com os rasgos de uma foto com a filha e as lembranças, tudo vindo à tona em forma de uma paralisia violenta e sustenida.

No início do filme, Julieta está para viajar a Portugal com seu companheiro quando, por mero acaso, encontra uma amiga de infância da filha, que lhe dá notícias de Antía,, hoje vivendo na Suíça, com três filhos pequenos. Essa notícia será o gatilho para Julieta perceber que não importa onde vá, mas que aquele segredo terá que ser enfrentado, vivido e expiado.

Como ponto de partida para esse resgate, Julieta se muda para seu antigo endereço, onde, muitos anos atrás, morara com a filha, na esperança de receber alguma correspondência. E até recebe. Mas cartões monossilábicos, onde o silêncio será uma ferramenta devastadora para impor limites ao não viver dessa relação dolorosa, raivosa, e mal compreendida.

O filme fala de tantas coisas importantes, mas principalmente sobre as perdas e de como mãe e filha enfrentam uma tragédia, suas dores e os seus danos e consequências, Duas atrizes de talento protagonizam Julieta em tempos distintos: Emma Suárez/Adriana Ugarte. Algo de trágico acontece, e, Julieta irá expurgar uma culpa, transferida para a filha Antía, que abandona a mãe por mais de uma década, em busca da sua vida livre de um passado que, quem sabe também não consegue lidar. Fugir é a questão. Fugir como forma de resistência? Será? Julieta também tenta fugir, de casa, se casa, quer ir para Portugal, não sabe que livros levar, mas aí encontra um vestígio da filha e fica. Fica para se mudar para o antes, re-fazer os caminhos (da escola, do jogo de basquete, da amiga Beatriz), tudo isso afundada numa tristeza devastadora. Uma tristeza que lhe impregna a carne e que lhe mantém os olhos na sombra da falta.

Na estória temos primordialmente um segredo. O sofrimento do não dito e de como esse silêncio irá se transformar em dor insuportável. O silêncio como um vírus! Antía descobre coisas e sai montando o seu próprio quebra cabeça, jogo esse que retorna nos pedaços da sua foto com a mãe/Julieta, que por sua vez tenta re-montar os pedaços da imagem da foto, assim como os seus próprios. O dicionário Feminista (1988) pensa sobre o silêncio feminino, dentre tantas possibilidades como algo que, quando é imposto, algumas vezes é lido como passividade. Ou ainda, como argumenta a crítica literária Adrienne Rich : “Num mundo onde a língua e o nomear significam poder, silêncio é opressão, é violência.!” Palavras para pensar a opressão e violência física e simbólica com as mulheres através dos séculos, mas que podem sim ser pensadas também quando vividas entre as mulheres, no caso mãe e filha.


Ainda no início do filme, um homem se suicida no trem. Morte essa que, instala a culpa em Julieta que negara uma conversa com o estranho, minutos antes. Nesse momento, Julieta conhece Xoan, seu amor e pai de Antía. Nesse encontro, temos uma das cenas mais lindas do filme: um alce corre do lado de fora da janela, na penumbra, em câmera lenta, anunciando que sente o cheiro de fêmea. A escuridão do lado de fora, os olhos brilhantes de um alce faminto, e o desejo; do alce e de Antía, já premonizam (foreshadow) o devir.

Além dos contos de Alice Munro, o filme dialoga também com outras artes. Como a pintura realista de Lucian Freud (o quadro na sala do apartamento de Julieta), e esculturas fálicas do personagem de Ava, personagem essa que tem papel fundamental no conflito entre Julieta e Xoan e que ironicamente, termina com doença autoimune paralisante, que nem mesmo o barro criador das suas obras, poderá lhe devolver a expertise com os gestos fálicos das figuras que cria.

Almodóvar também faz uso dos diários. Julieta, encontra nessa técnica, escrevendo cartas à Antía, para lhe contar toda a verdade, a solução para a sua dor. Escrever é sim uma forma de quebrar os cristais do silêncio. O Dicionário Feminista também define diários como uma ferramenta de auto-desenvolvimento, auto-exame, auto-proteção, na maioria das vezes inspirado pela solidão das mulheres. Julieta sente uma solidão cósmica diante do desaparecimento da filha e, se protege e busca respostas nesses escritos, que, se não chegam até ela, chegam na organização dos seus próprios pensamentos e minimiza sua angústia. Ela , que busca freneticamente um remetente nos cartões silenciosos da filha. Um endereço sequer…., um rastro…uma caligrafia, e só tem silêncio e mais silêncios.

The unnamed should not be mistaken for the nonexistent. (O não denominado não deveria ser confundido com o não existente.)

Na sua escrita de si, Julieta pergunta por onde começar? E começa lá do trem. Depois conta para filha da sua vida perto do mar. Julieta é professora de literatura clássica e fala de tragédia, de Ulisses, da espera, das redes, das teias, e da significação do mar. O dicionário de símbolos – Jean Chevalier (1998) fala que o mar é um símbolo da dinâmica da vida; lugar onde tudo sai e a ele retorna; lugar dos nascimentos e das transformações e dos re-nascimentos. O mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda informes às realidades configuradas à uma situação de ambivalência, que é a de incerteza, dúvida, indecisão e que pode se concluir bem ou mal. Mar – imagem da vida e da morte. Na mitologia, a criança que é jogada ao mar. O mar rompe a máscara com a qual seu rosto estava coberto.

Entre os místicos, o mar simboliza o mundo e o coração humano, enquanto lugar das paixões. E é do mar de onde Julieta tira saber (Ulisses), amor (Xoan e Antía) , delícias, entregas, mas também dor, perdas insuportáveis, culpas e, se não suas próprias transformações, pelo menos estados transitórios de ambivalências e dúvidas de que fala a simbologia.

Almodóvar faz uso sim das suas cores berrantes, mas nesse filme tempera-as também com cores pastéis. Na cena do trem, e na juventude, Julieta usa meias azuis, como se com suas meias já sentisse o cheiro do mar e da paixão que o azul marítimo lhe traria, assim como o Alce que passa pela janela. Depois, na fase do coração dilacerado, finda num apartamento que tem um papel de parede de cores exageradas e até mesmo grotescas, e ela pretende arrancá-lo, e pintar as paredes de cores claras. Papel de parede esse que, nos remete também a um outro certo papel de parede, icônico na literatura feminista, personagem principal do conto “The yellow wallpaper” – da escritora americana, Charlote Perkin Guilman. Estampa, loucura, busca da identidade, solidão, temas do conto de Guilman, mas que também se fazem presentes na estória de Almodóvar, embora em Julieta, o tema não seja a loucura em si, mas a loucura da dor. O pudor de senti-la. A expiação das culpas que ancestralmente as mulheres carregam na maternidade – Cada um tem o que merece!, diz uma das personagens .

E, depois de uma tempestade, não surge a bonança, mas uma raiva, um desentendimento, uma tatuagem literalmente ferida – e o desejo de querer ver-te surgir através da chuva! E uma tristeza de não se poder com a própria alma!

Antía só perdoa a mãe, e só se dá conta da dor que causara tanto em Julieta, como em si própria, quando ela mesma perde um filho. Dessa vez não mais no mar, mas também nas águas, nas águas paradas de um lago, que não mais como a imensidão do mar adentro, mas num lugar onde tem como símbolo o feminino e o mais irônico – o doador de fertilidade. Mas o lago também representa a transição da vida, morte e ressurreição, e também o espelho para a auto-contemplação, bem como uma oportunidade para a revelação. Somente na tragédia toda sua que, Antía pode ver a dor que provocara em Julieta e pela primeira vez, assina seu nome no remetente da carta. Como que nesse momento, autorizando a proximidade do amor da mãe e filha. Sua tragédia , assim também como a tragédia da coreógrafa Isadora Ducan, que igualmente perdera seus filhos no rio, faz-lhe sangrar todas os silêncios impronunciáveis, e no sangramento das dores, a única solução será o re-encontro. Re-encontro com seu passado, com Julieta e com os fantasmas das dores da perda do pai. Assim, imaginamos, ao ver Julieta e seu companheiro viajando pelas estradas curvas e sinuosas, e de paisagens plácidas, em direção ao Lago Como.

O lamento (tanto das personagens como da música/trilha) , a culpa, a verdade, a mentira, tudo desemboca, nas estradas lindas da Suiça. Em algum lugar, mãe e filha poderão sim se abraçar, e quem sabe ter vestígios de uma esperança possível através do amor e da transcendência.

Referências/citações em inglês- Kramarae Cheris and Paula A. Treichler- A Feminist Dictionary: London Pandora Press, 1985. Tradução livre.
Chevalier, Jean, Alain Gheerbrant. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa, 23 de julho, 2016
 


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