Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

Quem será minha viúva?


01/03/2016

Foto: autor desconhecido.

Quem será a minha viúva, a escolhida,
Não a derradeira, não a última?
Dormirei com que aliança?
Qual dos anéis de ouro e brasa me servirá depois de
{inchado,
Depois de emagrecido, depois de enegrecido?

(Fabrício Carpinejar)

Quando era mocinha e chegava o São João, adorava fazer adivinhação nas bananeiras, bacia de sabão, faca amolada, para ver quem seria o meu amor. Que curiosidade! tudo para adivinhar sobre as questões amorosas que a vida insistia em não me dizer. Namorei cedo, me apaixonei demasiadamente, me casei mais cedo ainda, e vi desmoronar todas as adivinhações mais que cedo também. E por entre sustos e perdas profundas, aos 26 anos já tinha cruzado as linhas do Equador da vida amorosa. E estava desquitada. Era esse o nome para depois ser divórcio. Sinal de insucesso? Com certeza não. Achava que tudo tinha dado certo. Fui felicíssima enquanto durou e mais infelicíssima enquanto separava. Os anos 70 findavam e Cazuza já me sentenciava – Exagerada!

Nas próximas décadas – tudo foi permitido. E comigo não foi diferente. Viver era preciso! E alguns anos mais tarde me casaria para sempre! Eu pensava! E assim se passaram 24 anos e 10 meses. E quase cheguei às pratas! Mas todos os tesouros me brindaram nas questões do amor. Inclusive os metais mais toscos e sombrios. Sim , não acredito em amor cor de rosa. E quanto mais quente , melhor! Altos e baixos! Frescos e densos! Sóbrios e embriagados! Amorosos e cruéis! Na literatura não existe estória de amor emocionante e digna de ser contada em versos se não for trágica. E a vida imita a arte? Ou não seria o contrário? Amor morno, bem comportado, erudito, compreensível, e discreto? Não seria muito o amor apaixonado. O amor louco!

E quando vivemos um grande amor, nunca pensamos que será o último. O tempo congela. E seguimos vida afora.

Há dois anos e oito meses estou viúva! E nesse tempo, dentre tantas interrogações e su e saudades, me pergunto, vivo e sinto o que seja este estado civil. Ou de espírito.

Já experimente alguns outros estados, solteira, casada, viver junto, separada, divorciada, escondida, às claras, mas confesso que este lugar só causa perplexidade e desconforto.

Ficar viúva, ao contrário dos outros, não é uma escolha. É um destino. Cruel. À sua revelia . Dizem os ditados populares que não existe viúva triste, se for rica? Será? Sei bem que o dinheiro traz sim felicidade, mas e o amor, esse estado que precisamos tanto e tomara que vivamos sim, plena, feroz, completamente?
Viúva alegre! Ouvi logo depois de algum tempo da minha viuvez! Seria um elogio? Uma crítica? Um julgamento? Um estado que parece se abstrair no tempo e no espaço? Mas o homem/mulher continua a vida. Vida que pulsa! Que vive! Difícil e solitariamente…pelo menos por algum tempo. Ou por todo o tempo preciso.

Tem mulheres que, quando ficam viúvas se libertam. Da prisão do casamento. De um estado acabrunhado. Da solidão a dois. Do confinamento e domesticidade que ainda hoje nos condenam. A escritora americana Kate Chopin já escreveu magistralmente um conto sobre isso: “A story of na hour”, sobre a dor de uma mulher que ao saber da morte do marido, secretamente tem momentos de alegria pela liberdade que vislumbra, mas uma felicidade que só dura um dia, pois ao cair da noite, o marido chega incólume, uma trapalhada de muito barulho por nada surge como um mal entendido entre as partes, e, ao ver os seus sonhos abortados, frente à (in)felicidade do marido vivo, não suporta tanta ambiguidade e morre, de infarto fulminante. Uma notícia muito (in)feliz para o seu pobre coração des-pedaçado, literalmente. E ironicamente dizem que ela morreu de felicidade! Quando nós leitores sabemos que a possibilidade dessa felicidade gritou lá dentro mais que a surpresa do marido vivo. Não se pode acender todos os fósforos de uma vez, já vimos isso em Como Água para Chocolate, da mexicana Laura Esquivel.

Mais recentemente, percebo mulheres mais jovens que se deliciam com as novas possibilidades de vida, não necessariamente de um novo amor, mas de uma nova liberdade nunca dantes permitidas a navegar. Um espécie de estado à deriva permitida. Não pertenço a esses dilemas, mas a outros! Pois na vida, persegui a liberdade e autonomia. Nem sempre consegui, mas consciente disso, mergulhava – sem rede de proteção. E confesso que, o frio do paraquedas que nem sempre abria, valia o preço de me conhecer em situações adversas todas.

O poeta Gaúcho Fabrício Carpinejar, no seu livro Todas as Mulheres, tenta traduzir as palavras da grande dúvida dos homens: “quem será a minha viúva?” Como comenta Pedro Gonzaga na orelha: “De um mais além poético, uma voz lírica percorre a sua própria câmara mortuária em busca daquela que será a derradeira depositária de seus sentimentos, de suas experiências, de suas saudades e solidões, de suas cinzas deixadas sobre as coisas, última forma de urna que haverá de guardar o pó de suas memórias”.

Nunca havia pensado no assunto nos meus dias passados. Mas nesse tempo de viuvez, penso em tudo: E se tivéssemos tido mais tempo? E nossa velhice? E se ele me visse agora, tão carnavalesca nas Raparigas de Chico? Conhecendo-o tão bem, tenho certeza que diria: “D. Ana, já aí festando hein?” Jamais me cerceou o direito de ir e vir – alegre ou tristemente!

Está aí a diferença entre viúvas e viúvas. Um estado tão ambíguo! Tão secularmente aprisionador. Um espaço de recolhimento, mas não só, e para a sociedade que espia de longe/perto, tornado findo o sexo e tantas outras alegrias da vida! Mas, se tivestes um amor vivido, não tens do que te libertar. Nem do que se maldizer. Tão pouco se fechar. A viúva pode representar um ser solitário e misterioso, para alguns, ou para o nosso imaginário. Estaríamos ainda no século dezenove? Com seus véus negros seculares, afugentam os homens que não ousam se aproximarem do leito tão preenchido…. Já as mulheres, tem os medos de sempre – a disponibilidade das outras! E assim a vida continua, implacável para com as mulheres, e não seria diferente para com as viúvas. Mas a roda é viva!

Já os viúvos, esses, se o experimentam numa fase mais tardia da vida, um sofrimento mais ainda intransponível. Esses homens mais velhos não tiveram uma relação com a casa de cumplicidade; e tinham nas suas companheiras , na maioria das vezes, o seu esteio diário e cotidiano, e aos se verem sozinhos, e já mais velhos para refazerem a vida ( se bem que os homens sempre o re-fazem, e sempre encontram um par à sua disposição!), definham e logo se encantam. Com exceções, e alguns com humor e alegria como o historiador Bóris Fausto, que no seu livro “O Brilho do Bronze, resolve , em forma de diário, vivenciar seu luto da esposa, depois de 49 anos de casado e de amor pleno, e nos emocionar através do amor, da graça, desprendimento, e coragem de seguir.

E assim como nos poemas de Carpinejar, eu guardo você intacto! “Conheci você por último na sua caixa de ossos! Conservei as suas medidas na minha nudez! Previ sua morte, mas não matei minha fé – na vida! Chamei-lhe de estúpido muitas vezes, mas também sussurrei palavras doces, sem terço na mão! Estou sim inventando palavras novas para novos sentimentos! Velo suas mortes: da sua imagem, sua melhor versão, sua agressividade, seu suspiro, seu bocejo! E sei bem que, A vida terminou e não acabou! E “Minhas pálpebras jamais rasparam o fundo. Nem meu aceno não revelava tudo” Não sei se fui a única que transformei os lírios em espadas, a que diminuiu os olhos dos cavalos, ou a única que umedeceu o talo da lua. Mas com certeza enchi seus braços de mordidas, lambi sua nuca, e nem concedi trégua nem alívio.”


Quem será a minha viúva, quem reuniu
O meu pensamento e o meu corpo num lugar?
Quem se deitará sobre o vidro, e quebrará a vitrine de vento,
Quem encostará os seios para me aquecer?
Quem não se importará com essa cama de solteiro,
Com minha palidez, com a ausência de iniciativa,
E encontrará um jeito de se dobrar em concha
Para respirar nos meus ouvidos todo o mar?
…….
….O nascimento e a morte
Se repetem e se completam.
….Me viciei em você, e fali em você.

E na semana do Dia Internacional da Mulher, eu me abraço! E eu abraço às viúvas, essas mulheres que vivem num entrelugar da dor da perda e de outras delícias da vida toda nossa.


Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa 2 de março, 2016
 


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