Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

Quem tem medo de Claire Underwood?


16/02/2016

Foto: autor desconhecido.

Passei os últimos tempos por entre festas de final de ano, verão, férias e carnaval assistindo às três temporadas da Série House of Cards, uma série norte-americana de drama político criada por Beau Willimon para o serviço de streaming Netflix. A série tem como protagonista Kevin Spacey, como Francis Underwood, um ambicioso político que almeja um alto cargo público em Washington, D.C. , e Robin Wright, como sua linda, elegante e enigmática esposa. House of Cards é uma adaptação do romance homônimo escrito por Michael Dobbs e da minissérie britânica criada por Andrew Davies.

Agora estou em estado de aflição esperando ansiosa pela 4ª temporada!

Esta Série me fez re-viver muito da minha vida, uma vez que fui casada com um homem da política. E eu, bagrinho bagrinho, na inocência da minha vida comezinha pequeno burguês, me estranhei muito nesse meio tão algoz e perverso. O meu companheiro, Júlio Rafael, era um mestre nessa arte, e aqui não me refiro à perversidade e meandros da política, mas a Política como ciência e aporte dos homens que precisam viver em comunhão e democracia. E muito muito aprendi com essa íntima convivência. Mais ainda sobre a natureza humana. E muitas dificuldades vivi também . Pois a vida política não é para todos. E com certeza não era para mim. Então vivi sim, também entre esse paradoxo entre o amor e a dificuldade. Agora que já não o tenho mais, e assistindo à Série, me bateu muitas saudades dele, e do seu mundo de pensar sempre no coletivo e no maior. Como teria sido bom assistirmos juntos esse enredo e discutirmos inflamados após cada capítulo! Claro que é preciso guardar as devidas proporções, pois a Série é sobre um político, Francis Underwood, que quer ser Presidente dos Estados Unidos, consegue, e depois quer a re-eleição, e para isso, passará como um trator em quem lhe aparecer pela frente. Inclusive a sua mulher amada. Ou somente mulher, Claire Underwood.

Além de ter me instigado muito nesse mundo adentro dos ferozes, ainda tive o conforto e alegria de ter sido apresentada à Série, pelo meu filho Daniel, que fez questão de assistirmos juntos no sofá, o que me dava uma sensação de afeto incomensurável. Como se juntos buscássemos um pouco da presença perdida de Juca. E em meio às notícias de ondas gravitacionais, galáxias outras, Dengues, Zicas e Chikunguyas, nós nos deliciávamos em perplexidades sombrias desse casal e todo o entorno da política americana. Os podres poderes! E tudo de mais aberrante que esse mundo possa trazer. O inimaginável! Poder e sexo! Um se entranhando no outro por entre facas, gozos, mistérios, tragédias, conchavos e corrupções.

Mas não vou aqui analisar uma Série tão já comentada pelos especialistas. Fiquei, dentre tantas variáveis e abordagens, a prestar mais atenção na personagem de Claire Underwood, mulher do candidato, vivida por Robin Wright, diretora de muitos capítulos inclusive, e que coincidentemente ou não, há pouco se separava do também ator Sean Pean, numa conturbada relação de amor e agressões.

Passei a Série inteira impressionada com seu caráter tão gélido, vestida sempre em roupas retas, claras, simples, nua de qualquer adereço feminino, como se qualquer brinco também significasse emoção e fragilidade. Até mesmo seu cabelo, curtíssimo, lhe conferia essa esquálido imagem de mulher andrógina e prevenida de toda e qualquer ferramenta de sex appeal, ou feminilidade. Tudo isso, e mais, um sorriso preso, um olhar perdido, silenciosíssima, magérrima, de fala pouca e mansa, faziam de Claire uma mulher com a boca apertada, como que se a contenção fosse a sua arma. Ou sua prisão! Contenção essa que, com raríssimas exceções, explodiu, como quando esbofeteia o marido urgindo por um sexo animal. – olhos nos olhos, como uma última tábua de salvação, mas que, ele encurralado, nega. Pois nem eu aguentava mais ver aquele casal na periferia do faz de conta, dormindo em quartos separados e cirúrgicos, passando um pelo outro a vida toda, o mundo se acabando de votos, faltas, fuxicos, tramas, assassinatos, perseguições, solidões, tudo tudo, e eles acima de qualquer reação, como se fosse possível tanta parcimônia, a não ser a do Francis, em uma licença poética fílmica a falar olhando para a câmera e informar o espectador daquilo que já sabíamos – a sua real intenção, desejo, e/ou ação.

O pacto dos Underwood era: “tudo pela política”. Tudo pela vitória. Não importando se tinham casos extraconjugais consentidos ou não, abortos, abismos intransponíveis, e distâncias imensuráveis daquilo que um dia chamaram de amor.

Claire sofreu seu primeiro baque como primeira dama, quando o marido se viu obrigado pelo presidente russo, a barganhar seu posto como Embaixatriz da ONU, e entrar na mesa de negociações de paz, acordos ardilosos, pactos escabrosos….E ainda teve que se explicar publicamente sobre sua renúncia autorizada. Demais para uma mulher que estava sim à sombra do marido, mas que tinha a ilusão de que não! Quando se viu obrigada a ir nos palanques, como marionete, para prestigiar à classe média americana, e com isso angariar os votos para o casal perfeito, sua imagem geladeira começa a ruir. Talvez tenha cansado de ser pinguim! Começa já a questionar o casamento, seu papel, a vida na Casa Branca, o fato de não ter tido filhos, e os mais de 30 anos ao lado daquele homem que nem ela mais reconhecia, pelo menos como seu marido.

A gota d´água? Aí é que foi interessante. Numa visita de campanha, Claire visita uma dona de casa comum, com um bebê no colo, que nem votaria no seu marido. Mas ela insiste em entrar numa tentativa de fazê-la mudar o voto. E ouve dessa mulher um relado das mulheres mortais. Primeiro que tinham votos diferentes. Depois, se debulha em lamentações de quem já teve filho: cansaço, exaustão, solidão, pouco dinheiro, nenhuma liberdade. Mas a liberdade de naquelas quatro paredes talvez ser mais livre que Claire. Ela também fala dos pensamentos maus que tem nos momentos limites, quando pensa em sufocar o bebê com uma almofada para sair correndo porta afora daquele casamento e daquela maternidade tão querida e almejada. As contradições de quem é mãe de primeira, segunda ou terceira viagem! Claire ouve tudo impávida! E sai dessa casa completamente transtornada. E já não será a mesma. Falta aos compromissos do marido, de campanha, ao discurso da vitória, não atende aos telefonemas insistentes e irritados de Francis, que naquele momento só pensa em voto. E quando este volta da vitória solitária de uma das primárias para sua re-eleição, tem o enfrentamento que há muito esperávamos. Uma faísca de fogo, ou uma explosão completa, se intromete na relação do casal, e ambos dizem as coisas não ditas um para o outro. O silêncio? Já dizia a escritora americana Zora Neal Hurston: “Não existe agonia maior do que suportar uma estória não dita dentro de si!” Francis solta todo o seu desprezo implacável pela mulher, mostrando que, todo o amor até então tão gélidamente demonstrado, só acontecia quando ela lhe obedecia. E quando lhe era conveniente correrem juntos no parque, literalmente. A partir da cisão que Claire protagoniza, pondo sua re-eleição inclusive em cheque, a loucura lhe sobe a cabeça e ele é cruel e sórdido, vestindo a sua real carapuça, e colocando Claire no seu devido lugar, ou seja, completamente dispensável.

Fiquei a pensar na entrevista da americana e ativista feminista, Camille Paglia, por esses dias no programa Roda Viva, da TV Cultura, quando é assertiva ao dizer que: as feministas foram implacáveis com as donas de casa das classes menos favorecidas, ao não lhe darem os devidos ouvidos, em detrimento da vida pública e profissional das mulheres da classe média. Guardando as devidas proporções às ideias de Paglia, mas também concordando com muitas das suas posições, ao ver o olhar desarvorado de Claire àquela mulher com seu bebê amamentando, fiquei a pensar em, o quanto a vida doméstica, amorosa, e maternal ainda nos aflige, ainda nos desconcerta, e ainda nos emociona em busca de uma realização por vezes tão incompleta e misteriosa, mas mesmo assim em busca de um tempo perdido das nossas ancestrais, e que não volta mais.

Aguardemos pois a quarta temporada de House of Cards para vermos o que será de Claire Underwood! Quanto à nós. pobres mortais! Continuamos a querer ser a mulher maravilha ou mulher centopeia. Amor, trabalho, filhos, sucesso, sexo muito, corpo invejável, e suspirar bastante para acharmos que vale à pena tudo e mais um pouco do que conquistamos e vivemos até aqui.

Por ora!

Ana Adelaide Peixoto – 16 de Janeiro de 2016
 


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