Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

A História da Eternidade – Pé de Galinha, Pé de Bode e Pé de Urubu


25/12/2014

Foto: autor desconhecido.

 Para Zezita Matos, Marcélia Cartaxo e Débora Ingrid

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
(João Cabral de Melo Neto)

…E é através da pedra do Sertão e da poesia de João Cabral que começa o filme A História da Eternidade!

A História da Eternidade é um falso plano-sequência que pretende conduzir o espectador a uma viagem dentro dos instintos humanos, através de uma linguagem poética e metafórica. Acontecimentos que representam um amplo panorama da civilização ocidental e tudo que o ser humano é capaz, desde trucidar seu semelhante brutalmente até inventar a arte para libertar os sonhos estão presentes neste exercício visceral que expõe, sem concessões, a eterna tragédia humana.” (Sinopse de divulgação)

Um homem debaixo de uma árvore sem folhas que ocupa toda a paisagem toca uma sanfona triste. A música para porque logo adiante vem o funeral de um recém-nascido. Todos que moram naquela comunidade encravada no sertão nordestino acompanham o cortejo. Aquele é um lugar onde não há mais do que meia dúzia de casas, um bar, um aparelho de tevê comunitário e um telefone público. Ali vivem três mulheres: Querência (Marcélia Cartaxo), ao que parece a mãe do bebê morto, Alfonsina (Débora Ingrid) e Das Dores (Zezita Matos). Elas são as personagens centrais de A História da Eternidade (Brasil, 2014), primeiro longa do diretor e roteirista pernambucano Camilo Cavalcante, vencedor de cinco prêmios no Festival de Paulínia (SP) deste ano, entre eles, o de melhor filme. O filme também dividiu o premio de melhor atriz entre essas três atrizes, e ainda levou o prêmio da crítica (Júri Abraccine).

Gosto muito dos filmes que falam do Sertão, principalmente os da retomada do cinema brasileiro: Baile Perfumado, Abril Despedaçado, Eu, Tu e Eles e alguns outros. O Festival Aruanda (PB) -….nos proporcionou a raríssima oportunidade de assistir em primeira mão – A História da Eternidade. E mais um luxo: ter as atrizes principais na plateia.

E lá nesse Sertão das pedras, onde não se aprende nada, mas as entranhas da alma, que três mulheres vivenciam suas histórias, contadas num filme dividido por partes representadas pelos bichos do sertão, mas não só: Pé de Galinha, Pé de Bode e Pé de Urubu. Bicho, terra, homem, milho, voo, pio, pulso, desejos, seca, chuva e mar, vida, morte, pés, troncos e membros, que se dilaceram em um grito esquizofrênico.

Maria das Dores – (Zezita Matos), uma mulher sofrida e solitária que, reza pelas dores do mundo. De repente, recebe o neto em casa com hábitos e trajes da cidade. Cabelo oxigenado, brinquinho na orelha e uma cueca protuberante…Seus desejos se acendem. E algo está por acontecer. Um orelhão igualmente solitário faz a ligação desse povo com o outro lado do mundo. Um mundo desconhecido e excitante, mas que, nem sempre é possível decifrá-lo. Devorá-lo, talvez.

Querência – (Marcélia Cartaxo), que quando já não quer mais nada dessa vida, após perder um filho pequeno, lhe aparece um cego na janela. A lhe en-cantar o mundo com sua sanfona, e acordes tristes ou esperançosos de Dominguinhos. Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura! E Querência quer! E se permite à sua hora da estrela amorosa.

Alfonsina – (Débora Ingrid), a que quer o mar, e pelo desejo do mar e todos os seus símbolos, vive. Mar, lugar de renascimentos, de vida, de ondas do destino. Que poemas novos fostes a buscar, Alfonsina??? Mercedes Sosa canta!

Em um casebre fora do círculo, tem um tio no meio do caminho, Tio Joãozinho, vivido pelo magnífico Irandhir Santos(Cinema, Aspirinas e Urubus; O Som ao Redor; Tropa de Elite ; Olhos Azuis;), por quem me apaixonei ainda mais, quando do seu papel de Zelão (Meu Pedacinho de Chão). Já o tinha feito antes por outros dos seus trabalhos no cinema. Mas aquela fábula com o amor de Zelão, me pegou de jeito, pela TV.

Seu personagem no filme, um artista no meio da aridez e das ausências daquele lugar, que é tratado como louco e imprestável. A imaginação e a alma artista sempre funciona como elemento detonador diante do conformismo e da ordem de um lugar. A Bossa Nova é Foda! A poesia sempre detona uma mina de pedras enrustidas e/ou oprimidas. E, assim como chamou Santa Teresa de Jesus: “A imaginação é a louca da Casa”, Tio Joãozinho é um louco esquizofrênico! E somente Alfonsina consegue ver no tio, alguém para o além mar, como tão bem falou a escritora espanhola Rosa Montero, em seu livro – A Louca da Casa, “porque os romances, como os sonhos, nascem de um território profundo e movediço que está além das palavras. E nesse mundo saturnal e subterrâneo reina a fantasia.” E assim, com sua arte e fantasia, Tio Joãozinho sempre suspende tempo e lugar, e vê o quê quer, e vai onde a vista alcança.

Assim, Joãozinho leva Alfonsina para o meio das pedras, onde o vento lhe sopra sons e cores, e lhe ensina que, ao fechar os olhos temos o poder maior: O poder da imaginação. Como não lembrar de um outro filme – Mar Adentro, e o seu personagem (Javier Bardem), um tetraplégico que lutava pelo direito de morrer, não sem antes fechar os olhos e voar pela janela rumo ao mar. Aquele mesmo mar que, ao mergulhar, lhe tiraria os movimentos. Pois imaginando, nos permitimos a viajar para dentro, para fora, para além das fronteiras espaciais e temporais. E ai de nós se não a tivesse. Imaginamos o passado, o futuro, e re-vivemos esplendorosamente, tudo aquilo de que sentimos saudade nessa vida, ou aquilo com que sonhamos viver.

Irandhir Santos faz uma das cenas clímax e belas do filme. Entre um ataque e outro de epilepsia, onde se debatia e espumava, ao vento inclusive…. enrolado na sua rede de macramê de coisas, uma rede à arte também de um outro louco da imaginação, Bispo do Rosário, sai para o chão batido, canta e dança. Dança com o corpo, com os desejos , com a alma, a música “Fala” (Secos e Molhados). Como se sua fala, a de um louco e não autorizada daquele lugar, só tomasse forma de discurso, diante da solidão da sua dança espumas ao vento… E gira gira e gira, entregue completamente aos seus instintos e sentimentos arcaicos. Sem medo de sentir. Sentir o próprio movimento, o pulsar da vida que por entre galinhas, bodes e urubus, transborda. E Alfonsina, maravilhada com aquela dança da vida, se deixa viajar. E também entra em sintonia com o fascínio da liberdade de sonhar. E viver. E amar. E assim como Amar, de Drummond, ouvimos a sua poesia:

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor à procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor…

E diante da brutalidade do homem do Sertão, o artista se sobrepõe. Mesmo sendo arrastado e violentado pela incompreensão e pequeneza humana. Mas Alfonsina aprendeu a se defender pela imaginação; Querência resolveu querer e Das Dores…ah! essa, como seu próprio nome lhe aprisiona, está lá para carregar as dores do mundo. As três se entreolham e acenam – para um novo dia. Para mim, basta um dia! Pelo visto, para essas mulheres também!

…Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa, amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.

Feliz Natal & Um Ano Bom!

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa 22 de dezembro de 2014


O Portal WSCOM não se responsabiliza pelo conteúdo opinativo publicado pelos seus colunistas e blogueiros.
Os comentários a seguir são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site.