Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

A Escrita de Si


18/11/2014

Foto: autor desconhecido.

À memória do meu pai, Romero, que hoje estaria completando 94 anos de vida. E que eu lembro dele com amor, todos os dias. Lembranças vividas, lembradas, ou inventadas, e que diferença isso faz?

...a memória é o meio pelo qual o indivíduo acumula padrões de significado pessoal, nos quais ancora sua vida e protege-a contra a “chicotada do acaso”...”(Virginia Woolf – Moments of Being)

Nas últimas décadas, assistiu-se a um boom das autobiografias, livros de memórias e testemunhos. O que antes era escondido, veio parar nos espelhos da vida. Até chegar-se aos Selfies, redes sociais, e a toda e qualquer tentativa de apreender o instante vivido e fotografado.

Assisti ontem na Pós Graduação em Letras, UFPB, à uma mesa redonda “Memory and Literature”, com duas autoridades no assunto, mediados pela colega e amiga, Profa. Dra. Liane Schneider. Foram elas:"Memory and Memoir", Dr. G.T COUSER, Hosftra University, NY, United States. E"Truth and Testimonio", Dra. Laura Jean Beard, University of Alberta, Canada.

Falou-se do boom das escritas de autobiografia; diferenças entre memoir, memory, mimesis; e das ambiguidades e todas as complexidades que esses termos acarretam. Um Boom que explodiu com os anônimos , os nobodies , as minorias, numa querência ao seu lugar ao sol – ou à evidência da exposição, do mostrar as suas vidas como elas são.

Sempre foi complexa a relação literatura x vida x arte. Virginia Woolf, uma escritora que entendia a literatura como uma experiência subjetivada, se utilizou da sua poesia da existência, para questionar sobre o viver enquanto um segredo a ser descoberto; a relação de viver e criar, como algo a ser construído, e a escrever como um viver a vida! Virginia se apresentava assim, no seu memoir: Sketch of The Past (1930): “Quem era eu…? Adeline Virginia Stephen, ..descendente de muitas pessoas, algumas famosas, outras obscuras; nascida numa ampla conexão; nascida de pais ricos…; nascida num mundo muito comunicativo, literário, que escrevia cartas, que se visitavam, e articulados, do final do século dezenove”. Com essa apresentação de si, Woolf já se antecipava às teorias multiculturais; já antevia a inserção das pessoas como sendo múltiplas e híbridas, procurando sempre nos diários, os seus devaneios sobre si e todos os seus caros assuntos.

O mesmo se dava na escrita dos seus inúmeros e profícuos ensaios literários, os quais sempre começavam por algo pessoal, ou por uma centelha de algo concreto, para a partir daí ganhar os mundos abstratos, viscerais, e artísticos, como por exemplo em seu texto: “Professions for Women”, quando fala do seu trabalho em resenhar livros escritos por homem; ou constata que, escrever era para as mulheres era uma ocupação respeitável e que não oferecia perigo à sociedade; e que não tão pouco quebraria a paz familiar… ou ainda que, escrever era uma atividade barata, pois por 6 Pences se podia comprar papel o bastante para escrever todas as peças de Shakespeare!! E que para se escrever não se precisava de pianos, modelos, Paris, Viena , Berlin, masters ou mistresses….E com sua ironia sagaz e cortante, Woolf seguia do particular/privado para o artístico/literário/público, pensando e acrescentando ideias à literatura, à vida e à arte.

E é a partir do recebimento do seu primeiro salário e da compra de um gato que, começa a teorizar sobre escrever, criar estórias, o papel do escritor, o êxtase da escrita, os empecilhos literários que as mentes femininas enfrentavam, as armadilhas da imaginação, e a morte da fada do lar, uma metáfora que ela corporaliza para falar das arestas, limitações, e dos medos das mulheres quando resenhavam textos escritos pelos homens.

Palestras nos proporcionam digressões. E depois desse passeio por Virginia Woolf, volto à palestra da UFPB! Segundo o professor Couser, o gênero Memoir, ao contrário da autobiografia que envolve toda uma vida e pode ser feita por qualquer pessoa e sobre conhecidos ou estranho, se estabelece sempre a partir de um fragmento, de um recorte, de uma subjetividade, um lampejo, que pode ser qualquer tempo no fio da vida. Tanto num, quanto no outro gênero literário, as questões do texto em relatar o que aconteceu na vida e o que é lembrado, é outro elemento complicador. Até porque nós mudamos ao longo do tempo, e nossa memória seletiva está sempre a nos trair, e a olhar de um determinado ponto, e não da verdade dos fatos.

Aí entra outro abismo: A verdade! O que é a verdade? Com certeza uma área nebulosa! Que o professor ilustra com termos como Flashbulb = algo marcante a ser lembrado e determinante na agenda de cada um. Enquanto nos movemos na vida, os pensamentos e a memória também se move…. E esse movimento tem a ver com: o inconsciente, a personalidade, a seleção, a composição, e a criatividade de um texto.

O que seria uma cena? Um resumo? Um dia? Um dia na vida de uma mulher! Mrs. Dalloway disse que ela mesma compraria as flores!, uma coisa inusitada, um diálogo, O que aconteceu? Questões de verossimilhança. De Imediatismo sem mediação! O que acontece entre: O Eu –agora – escritor do texto e o Eu – então – sujeito da ação? Uma obrigação de quem escreve uma Memoir? Refletir sobre a experiência. Não somente retrata-la, mas pensar sobre, eis a questão.

Laura Beard falou sobre Testimony/Testemunhos, e de como esse gênero se tornou um componente importante do estudo da América Latina nas Escolas Americanas. Referiu-se a : “Me llamo Rigoberta Menchu’ e Si me permiten hablar.., e a Domiliba Barrios de Chungara, ambas mulheres importantes para ilustrar essa discussão sobre Testemunhos; essa coleção de termos voltado para a legitimação de uma identidade social e coletiva, que toma os termos da auto-representação e por vezes questiona quem teria o poder de mudar esses termos e sob quais circunstâncias. Um gênero que trabalha com a questão de autoria, autoridade, agencia, autenticidade e autolegitimação. Novamente a questão sobre A Verdade! Qual a verdade? Quem tem o poder de determinar essa verdade; como a verdade é vista nas diferentes culturas; como compartilhar essa verdade? quem conta a estória, quem escreve? Quais as expectativas da vida narrada? Falar é sim um ato de resistência! Dar voz aos sem voz!

E ao relativizar a autoridade de quem conta e de quem ouve; ao pensar sobre esse Poder, ao mesmo tempo em problematizar a questão do segredo, do não dizer, do guardar, eis que no meio do conflito e da responsabilidade, surge uma luz de equilíbrio: Guardar um segredo é sim um ato de não-submissão! E de resistência! E uma resposta possível seria compartilhar esse poder com o leitor. Como essa estória é contada, quem recebe o dinheiro? Basta que lembremos das questões das biografias autorizadas, e de todas as polêmicas que isso implicaria com liberdades de expressão, censura, o que é publico e publicável, e o que é privado e guardado….

Fiquei a pensar nas minhas crônicas, nos meus testemunhos particulares. Não falo em nome de uma situação crítica, nem demando mudança social, muito menos quero fazer uma revolução, nem criar um ato político . No espaço pequenino do meu quintal, vou saboreando experiências de dores e delícias; de crescimento ou simplesmente de prazer; de solidão ou de sisterhood feminina; de domesticidade e inadequação, ou de brilho e imensidão, enfim…vivências de alguém que não sabe criar ficção e plots e tramas, e toma tento e ciência das suas limitações, procurando nas crônicas, fazer ecoar uma voz que fala em nome de si, mas também em nome de um tempo, de um despertar feminino que tem sim haver com a libertação feminina, a luta das mulheres, e a produção literária.

A palestra me fez pensar. Na vida. Nas memórias. E na minha coleção de textos que duramente tento organizar. E fico também a matutar na distância do que se vive, do que se escreve sobre, das artimanhas do pensar, do lembrar, e dos percursos do viver – tão rápido, tão longe, tão perto.

Pensar a literatura, falar dela, e compartilhar. Na Universidade Pública ainda temos dessas pérolas, e me alegro e me regozijo com isso.

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa, 19 de Novembro, 2014


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