Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

Francisco Brennand – Retrato do Artista Quando Barro


16/04/2013

Foto: autor desconhecido.

Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.
Sem uso,
ela nos espia do aparador.

(Cerâmica – Carlos Drummond de Andrade)

“Para que serve a arte”, perguntaram à Fernanda Montenegro por esses dias. E ela prontamente: “Para confortar!” E eu fui e sou confortada cotidianamente pela arte.

Vi primeiro seus azulejos, seus murais em Recife, com cajus e folhas grandes, à beira do Capibaribe. Tinha lá meus 17 anos de idade, e, embora já circulasse pela Galeria Janelas Verdes e pela Nêga Fulô, em Recife, ainda não sabia fazer uma leitura crítica desse mundo, ainda não sei, mas tinha muita sensibilidade para me deixar causar espanto diante do belo, do estranho, e do mistério.

Depois, tive o prazer de conhecer seu recanto, na Várzea, um moço bonito e imponente a me mostrar cada palmo do lugar. Saí de lá com uma caixa de azulejos azuis, que hoje enfeitam minha mesa tão precária, e tão inferior àqueles quadrados belos. Mas foi a forma que tive de manter algo daquela visita, no espaço da minha sala de comida, encontro e celebração.

Recentemente assisti ao documentário Francisco Brennand, dirigido por sua sobrinha neta, Mariana Fortes Brennand e com fotografia do paraibano Walter Carvalho. O filme tenta decifrar essa esfinge que é Brennand, mostrando seu canto de morada e de trabalho. Fiquei muito impactada com esse artista, um eremita da arte, que vim a conhecer nos anos 70, quando também me inaugurei em João Câmara e Samico artistas Pernambucanos. E mais Roberto Lúcio, esse paraibano-olindense, Raul Córdula e Miguel dos Santos. Flávio Tavares me apresentara a esse mundo das artes plásticas. Mais tarde, já no ateliê de Miguel, por onde perambulei por meio dos “cacos” Drummondianos, ouvia Miguel fazer muitas referências a esse ilustre Francisco Brennand.

No Dicionário Feminista a definição de Diário fala dessa forma de escrita mais associada às mulheres jovens, por razões várias, como auto desenvolvimento,auto exame, e auto proteção, além de uma forma de análise da sociedade. Mas principalmente como forma de minimizar a solidão.

Francisco Brennand, contrariando o gênero , mas corroborando a definição, escrevia diários. E foi a partir desse tesouro das palavras e dos fragmentos, que Mariana tocou no desejo de contar a sua estória. O filme parte dos diários do artista, que escreveu há 64 anos, quem sabe também como forma de se auto expressar, já que valorizava tanto a palavra, ao ponto de hoje, falar que: “Sexo sem palavras não existe”. Ao ser perguntado sobre esses diários, Brennand responde em matéria da Folha de 17/03/2013: “O que me leva a pintar, na realidade, são as palavras, tanto que meus desenhos e meus quadros quase todos tem títulos. Tenho horror de quem tem a pretensão de batizar obras de “sem título…como é que um quadro pode ser sem título, ou ´composição número 1´” pergunta Brennand. Dei risadas com essa constatação, pois confesso que adoro títulos e mais ainda, ver de que forma o título dialoga com a obra, seja ela quadro, filme ou poema.

Tudo começa com o artista mostrando seu lugar na Olaria e a criação de uma janela enorme, de onde, ele vê o mundo e o mundo lhe vê, através dos curiosos, ou de crianças que encostam o nariz no vidro, para ver o que está do lado de lá…Literalmente A room with a view!

No documentário temos falas do artista na sua oficina de cerâmica no bairro da Várzea, Recife, rodeado de pássaros por todos os lados, divagando sobre seu trabalho, sobre a arte, a vida, a velhice e a morte. A olaria, herdada do pai, reúne sua obra, marcada por uma mitologia particular trágica e sexual, que é chamada por ele de “bosque sagrado”. O bosque é marcado também por referências literárias como que pontuadas numa marcação de território artístico.

Brennand fala bem, é articulado e sabe do que fala. Embora viva isolado, vive também conectado com o mundo. Em entrevistas a jornais por ocasião do lançamento do filme, Brennand desdenha da arte conceitual; critica Beatriz Milhazes; não conhece Damien Hirst ou Cindy Shermann; apenas ouviu falar em Adriana Varejão, Nuno Ramos, ou Tunga; e reclama de como a cerâmica se sobrepôs à sua pintura: “Só faço cerâmica porque sei pintar”. Ao ser questionado pela comercialização dos seus azulejos como objeto de decoração em casas de classe média alta, ele retruca que isso criou ambiguidades quanto à sua reputação como artista. Brennand vive ensimesmado por entre totens e não dialoga com a cena artística, e sua obra parece confinada à leitura que ele mesmo impõe entre o artesanal e o exótico, como pontua Fábio Cypriano em matéria na Folha , 17/03.

Brennand emprestou 2.000 páginas dos seus escritos, para que sua sobrinha lesse cinco vezes, e só assim, ter material para esse filme, que foi premiado na Mostra de Cinema de São Paulo (melhor documentário) e na Abraccine, (melhor filme). E ainda conseguiu que o ermitão fosse à première , ver o trabalho de 11 anos que Mariana tentou captar das suas palavras à seu bosque sagrado.

Francisco Brennand, F B, Brennand – um homem, um mito, um artista, um eremita, um documentário. Uma olaria, mil pássaros, um abutre, Prometeu, Horror Horror, Joseph Conrad, Gauguin, Chapeuzinho Vermelho, um retrato, vários retratos. Uma Várzea, Um Ateliê, Um diário, Um filme.

Shakespeare dizia: “palavras, palavras palavras”; Samuel Beckett também questionou tanto o poder das palavras: “As palavras são manchas desnecessárias sobre o silêncio e o nada”. e Brennand fala que, “o terrível são as palavras”. Mas foi graças às suas palavras e seus diários, que tivemos o filme, e a oportunidade de se extasiar com aquele acervo, toda aquela sacralidade do lugar, e com esse artista tão singular.

Ana Adelaide Peixoto, João Pessoa, 14 de abril, 2013


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