Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

Pi & Richard Parker


22/01/2013

Foto: autor desconhecido.

Tyger Tyger. burning bright,
In the forests of the night:
What immortal hand or eye,
Could frame thy fearful symmetry?

(Songs of Experience, William Blake)

Nessa vida, temos que matar um leão por dia. Assim diz o ditado popular. Ou não. Como no caso do último filme do diretor Taiwanês, Ang Lee, As Aventuras de Pi, baseado no romance homônimo do canadense Yann Martel, filmado em 3D, e que me deixou mais perto do céu, literalmente. Nesse caso, o menino, com nome de Piscina, em Francês (Piscine Molitor), inteligentemente transforma seu bullying de identidade, em inteligência criativa . Pi, vindo da matemática, logo o faz mudar de lugar, de acuado para sujeito da própria vida. E na sua experiência Mar Adentro ou Nas profundezas do mar sem fim, ter um tigre com nome de gente por perto, Richard Parker, ao invés de matá-lo literal ou metaforicamente, o salva da solidão, do estado de alerta ininterrupto, dando-lhe o tamanho real da coragem, da criatividade, e do sobrevivência.

Lee diz à Revista Bravo: “Todo filme é a mesma coisa: sinto um tremendo mal-estar”. Imagino que se trate do abismo que todo artista enfrenta diante da tela/papel/estado em branco pré-realização da obra. O mesmo mal estar da relação homem x animal, como em outros clássicos: Melville e Moby Dick, Heminway O Velho e O Mar, só para citar os mais famosos, onde homem e bicho se mesclam na relação extremada de amor e ódio, identificação/repúdio, medo e atração.

Depois de me deliciar com A Arte de Viver (1992), com Banquete de Casamento (1973), Comer Beber Viver (1994, O Segredo de Broikeback Mountain (2005), Razão e Sensibilidade (1995, O Tigre e o Dragão (2000), Eis que tive meus êxtases imagéticos com As Aventuras de Pi, um filme sobre um menino indiano, que mora num Zoológico, e que vive a buscar a fé, mesmo que tenha quantas religiões conseguir. Seu pai diz que não se pode ter tudo nessa vida, mas escolher uma só não lhe parecia plausível, já que o sagrado estava em todas elas.. Pi, vivia em busca do divino e para isso, na sua inocência , até acreditava que o tigre tinha alma, e um olhar de compaixão, lição que seu pai logo logo tratou desconstruir, numa cena de choque, quando o tigre devora o cordeiro. Nesse momento, como não lembrar do poeta Inglês William Blake, Songs of Innocence and Songs of Experience, The Tiger and The Lamb, e suas palavras sobre a experiência x a inocência. Canções que poderiam ilustrar poeticamente esse encontro do garoto com a face do perigo, do enfrentamento e da perda da inocência e a aquisição da malícia e capacidade de ver a vida com outros olhos. Uma Epifania, ou várias, do seu caminho ao aprendizado e crescimento.

Após um naufrágio, Pi se salva num bote pequenino, como que numa Arca de Noé, junto com uma zebra, um Orangotango de nome Orange Juice, uma hiena risonha e ridícula e um tigre de nome Richard Parker, que com esse nome, Pi logo lembra do seu pai e sabe que, não tem como querer humanizá-lo, sem esquecer sua natureza de fera jamais. Tanto que, no final, quando a fera some na mata, não se despede de Pi, deixando-o triste e desapontado, ponderando que, nessa vida, temos que fechar os ciclos: “Se ao menos ele tivesse olhado para trás! Afinal passamos por tantas coisas juntos!” Lamenta o menino ainda incrédulo com a natureza e determinismo biológico dos bichos – uma vez escorpião, sempre escorpião!

Almir De Freitas na Bravo pergunta: “O que é preferível: uma história com as facilidades do realismo, mas aterrorizante, ou uma fantástica , ainda que pouco verossímil?” Essa é a pergunta do final, quando Pi, já adulto, conta sua estória para um escritor em busca da ficção. E contando duas estórias ainda pergunta: “Qual das duas você prefere acreditar?” E aí temos questões da narrativa, do que ouvimos, gostamos, fingimos, e de crença na arte de contar e ouvir estórias. Como não lembrar de um outro filme, Em busca da terra do nunca, e a estória de Peter Pan, que também passeia pelos caminhos da magia, da criação de enredos e boas estórias.

Por ser em 3D, viajamos com Pi na sua saga, sofremos quando Orange Juice perde seu macaquinho; quando o próprio Pi grita inutilmente pelo pai, pela mãe e pelo irmão; eu particularmente, gritei com uma patada do tigre, pensando em ter sido atingida…; nos horrorizamos com a histeria feroz da Hiena; nos deslumbramos com o céu infinito e sua noite mais brilhante; com o susto da visita da baleia; com os peixes voadores e a garantia de comida para Richard Parker; ou com o oásis e seus mistérios de plantas carnívoras e bichinhos traiçoeiros. O mar é mesmo um espaço de magia aterrorizante, que sempre fascinou os homens e nos ninou com histórias de Troncoso e de Robinson Crusoé. Ou até mesmo de Tubarão e sua música de barbatanas, de Steven Spielberg, que até hoje me deixa cabreira e sorumbática diante das ondas do mar.

Pi tem várias Epifanias para buscar, encontrar, agradecer, a sua relação com o Divino, e nós, espectadores, saímos com a nossa própria, a de humildade e reconhecimento do nosso próprio tamanho, de “Little Lamb, mild and little child”, como cantava Blake: “Little Lamb God bless thee”. Embora, como arrogantes que somos, muitas vezes esqueçamos disso, e bufamos uma grandiosidade que não temos.

Fiquei a pensar no meu Richard Parker cotidiano, e agora terei mais cuidado e, ao invés de matá-lo gratuitamente, ignorando minha insignificância, ficar em estado de respeito e espiando para que “Decifro-te ou devora-me”, e que não importa o quão selvagem seja o nosso perigo, ele está ali à espreita, para nos lembrar do medo iminente da vida, como tão lindamente disse Katherine Mansfield , em seu poema The Canary: “I must confess that there does seem to me something sad in life. It is hard to say what it is. I don’t mean the sorrow that we all know, like illness and poverty and death. No, it is something different. It is there, deep down, deep down, part of one, like one’s breathing. However hard I work and tire myself I have only to stop to know it is there, waiting.”

Hoje, no dia do meu aniversário, rezo aos Deuses e Aos Tigres e Dragões, para que, assim como Pi, eu tenha A Força, de reconhecer o que posso mudar, o que não posso, e reconhecer a diferença entre um e outro. E aceitar.

"Quando as coisas mudam, e elas sempre mudam, é necessário se adaptar"

(Reflexão sobre a passagem do tempo, sob a ótica taoista do cinema oriental, citado por Francisco Pires, Revista Bravo, Dezembro 2012)

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa, 22 de Janeiro, 2013


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