Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

Woody Allen: De dia com Madame Bovary; de noite com Paris


21/09/2011

Foto: autor desconhecido.

 Assim que li nos jornais as resenhas do último filme de Woody Allen, Meia Noite em Paris, fiquei curiosa. Queria ver urgentemente, pois pelo que diziam as resenhas, se tratava de uma homenagem aos artistas do início do século, e como que num toque de mágica, o protagonista atravessava um portal, bem como as fronteiras de suas fantasias temporais, para viver um conto de Cinderela masculino intelectual ao sabor de absinto, junto com os escritores americanos da época de ouro, ou ainda tropeçar com artistas surrealistas. Eu estava a trabalhar nas turmas de literatura americana contemporânea, mais especificamente, um conto do mesmo Woody Allen, The Kugelmass Episode, que assim como no filme, também brincava com o tempo, com um personagem canônico e com o tédio do amor romântico. No caso do conto, uma paródia, recheado de intertextualidades típicas da literatura de hoje e da liberdade artística do nosso tempo.

The Kugelmass Episode, fala de um homem, professor de literatura, que, entediado com seu casamento, resolve procurar um mágico, já que o psicanalista não resolvia suas inquietações, e pede para atravessar o tempo em busca de aventuras conjugais. E qual o destino? Quer a todo custo encontrar uma heroína literária: Ophelia? (Hamlet), Hester Prynne? (Scarlet Letter), Natasha? (War and Peace). Escolhe Madame Bovary: aquela sim é que era mulher! E lá foi ele cair diretamente no quarto da Madame. Enlouquecido, pois essa era uma mulher desejada, afixada no imaginário masculino por mais de um século, e ele ali, diante da própria – Quel plaisir! Madame também lhe cumprimenta, e juntos, explodem de amor. E assim a fantasia se cumpre, indo e voltando ao passado, à um personagem literário, encontrando às escondidas com Madame Bovary, ouvindo seus lamentos do tédio doméstico, e tagarelando com todas as neuroses tão já bem conhecidas dos noivos neuróticos e noivas igualmente neuróticas.

Assim, como a transgressão de um outro filme, A Rosa Púrpura do Cairo, esse conto, uma paródia à obra de Flaubert, vai trabalhar também com esse recurso, onde texto, página, leitor, fantasia, e realidade formam uma só tessitura. Chegam a um extremo, onde os alunos de literatura, ao lerem o romance em questão, avistam Mr. Kugelmass nas páginas do clássico, e se perguntam: “Quem é esse Judeu careca beijando Madame Bovary?” assim como Woody Allen o fez no filme Meia Noite em Paris, quando o protagonista, Gil Pender, chega a ver uma referência à sua pessoa quando presenteando à moça do brinco que não era de pérola, Adriana. Passado, presente, futuro, ficção, real, onde está mesmo o limite?

Lá pelas tantas, Mr. Kugelmass resolve fazer o contrário e traz Madame Bovary à Nova York. E nós leitores temos crises de risos ao ver Bovary em êxtase com a Broadway, e outros ícones da cidade: as estrelas de TV, O. J. Simpson, Ralph Lauren, Chorus Line, Guggenheim, ou tropeça com o estranho no ninho, Jack Nicholson.O casal apaixonado, namora, se encanta, esquecido do que fosse literatura e vida real. Tudo junto. Tudo misturado.

Só que, nem só de Madame Bovary se faz um caldo, digo um amor, e Madame Bovary, finda que coloca seu amante numa encruzilhada inesperada: “Case comigo ou me leve de volta ao romance”. Romance aqui, claramente criando uma ambigüidade entre o estado amoroso e o livro de ficção. Mr. Kugelmass começa a ficar entediado também. O tédio, material preferido desse maravilhoso diretor neurótico, ainda mais um tédio amoroso, para nos lembrar o quão difícil e laborioso custa uma relação romântica. Um tédio que extrapolou os dias cinzentos da personagem de Flaubert. E já desgastado, ele deixa lá Madame Bovary no Século XIX, e volta aos seus dias monótonos e aparentemente sem saída na Big Apple. Abandona o mágico, para algum tempo depois, esquecido da não funcionalidade da idéia tão louca, querer repetir novas experiências. Pede uma nova aventura, mas o mágico fala das dificuldades: “Sou um mágico, e não um analista!”. Ademais a máquina está com problemas, e sem destino Mr. Kugelmass entra na máquina dizendo a senha mágica: “Sexo e romance” , eis a questão! “O que não fazemos por um rostinho bonito…”, ele mesmo exclama. Mas o seu criador tem um colapso, morre, e Mr. Kugelmass à esmo, ao invés de cair nas páginas de alguma heroína literária novamente, ou do romance erótico de Phillip Roth, Portnoy´s Complaint, como desejava, vai se esbarrar nas páginas de uma velha gramática espanhola, de onde se vê em apuros hilários, a correr do verbo Tener (Ter), “ um verbo grande, cabeludo e irregular” que, incansavelmente não lhe dá trégua, fechando assim uma moral da estória que, quem quer muito, termina não tendo nada. Uma crítica talvez ao consumo, ao tédio, onde se utiliza da ironia dos verbos, quiçá das gramáticas.

Já no filme Meia Noite em Paris, de forma bem mais lírica, temos de certa forma, a mesma temática desse conto, ou seja, a busca por um tempo e uma situação perdida. Uma situação idealizada, só que dessa vez com todo o glamour da cidade luz; as rodas da intelectualidade do início do século XX, e um herói em busca do seu tempo perdido, da sua própria identidade subjetiva e literária.

Em Meia Noite em Paris, temos uma apresentação suntuosa de Paris e seu cotidiano, seus cafés, passeios, música , flores, o Sena, e o Bateau Mouche, e a chuva. Ah! Paris na Chuva, para a gente se enfeitiçar com um Trench Coat qualquer, de preferência ao encontro de um James Dean pelas esquinas, ou um Jean Paul Belmodo, com o rosto amassado do sono dos justos… Mas Allen está a homenagear os anos 20 e toda uma geração de escritores americanos e de outras nacionalidades e artes que, em busca da vida boêmia e da inspiração da cidade luz, lá se foram freqüentar à casa de Gertrude Stein, reduto do gueto das artes, que escreveu um conto/poesia chamado Picasso, artista que por sua vez que amava Adriana, que amava Modigliani, que amava….,na ciranda das noites glamorosas de Fitzgerald e Zelda, perambulando literalmente pela penumbra de uma Paris sempre em festa.

Allen visita o Café de Flore, hein Danuza Leão? E nos faz levitar visitando os jardins de Monet para depois exclamarmos conjuntamente que: Paris era mesmo uma Festa! Até a primeira dama Carla Bruni estava lá, dando seu toque icônico e real, misturando as fontes e legitimando mais um cartão postal, Versailles, diante do pedantismo de um esnobe, que destilava uma cultura para Inglês nenhum ver. Uma nostalgia pela Golden Age – Let´s Fall in Love! Uma estória sobre um rinoceronte, Salvador Dali com uns olhos tristes – “I see a filme, I see a plot, I see a rinoceronte!”. T. S. Eliot? Prufrock é o meu mantra! Até uma homenagem à livraria: Shakespeare & Company, The English Bookshop, se fez presente. Um lugar Cult e também abrigo das gerações perdidas. Um detetive que não encontrava sentido para aquele amontoado de referências literárias sumidas à meia noite, com abóbora e sapatinhos de cristal.

O personagem, Gil Pender (Owen Wilson), aspirante a escritor, um flâneur a contemplar as escadarias à beira do Sena, não acreditou quando ouviu Cole Porter, ou ouviu Hemingway a falar do que fosse coragem ou morte, ou as duas coisas. Também ficou histérico quando ao folhear um livro viu seu próprio nome ali mencionado, sendo ele próprio, A Rosa Púrpura. Assim como o professor Kulgelmass, ele também se viu impresso nas letrinhas da fantasia, que misturadas com realidade, transgrediam tudo o que conhecemos como tempo e espaço. Só mesmo os olhos da contemporaneidade dão conta dessa liberdade, que zomba da verossimilhança, esquece do tempo linear, e se joga no abismo da sedução de uma boa estória, seja ela um conto de fadas ou não.

E ao som do jazz novaiorquino, cantando na chuva sem a companhia de Gene Kelly, nós leitores e platéia, também pudemos sentir nosso rosto desenhado por Toulouse Lautrec, dançamos com Gatsby, ou com as bailarinas de Degas, visitamos o Haiti de Gauguin, para finalmente nos perguntarmos qual a nossa Golden Age. A minha em particular, seria London London dos anos 70, com rock, Portobelo Road, cream tea, bolsa indiana de espelhinho, Mary Quant, e Strawberry Fields Forever!

Ana Adelaide Peixoto João Pessoa, 18 de setembro, 2011


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