Educação

ITA e USP criam plataforma para mapear ‘gênios’ de escolas públicas

Talentos


02/06/2014

 Um grupo de cerca de 25 jovens profissionais egressos de universidades de prestígio no País desenvolveram uma ferramenta capaz de localizar onde estão, quem são e o que fazem os alunos mais promissores das escolas públicas brasileiras. A plataforma, chamada de Garimpar, conseguiu consolidar em um mesmo ambiente os resultados obtidos pelos estudantes nas últimas edições das principais olimpíadas científicas e de conhecimentos existentes no Brasil. Atualmente, nem o Ministério da Educação (MEC), nem as redes de ensino brasileiras, muito menos as organizadoras das olimpíadas têm esse tipo de mapeamento global criado agora pelo grupo de forma pioneira.

Ainda em sua versão beta, o sistema quer colocar em contato eventuais escolas ou pessoas físicas dispostas a financiar os estudos dos alunos mapeados pelo Garimpar. Hoje, existem organizações e colégios dispostos a oferecer bolsas a alunos de destacável desempenho escolar. Com a ferramenta, será possível identificar estudantes que moram nas grandes cidades, nas periferias, no interior e até na zona rural da maioria dos mais de 5 mil municípios brasileiros. A Garimpar, contudo, ainda não está aberta à consulta pública, e também não há uma previsão específica para a socialização dos dados. No momento, apenas organizações parceiras têm acesso ao levantamento.

Muitos dos estudantes que já estão mapeados são considerados exceções em suas comunidades e na própia escola. Além disso, uma porção deles vive em condições sociais adversas e de limitação de recursos, sem contar que estão ambientados em uma realidade que acaba por forçar o determinismo social, segundo afirmam os idealizadores. Ou seja, os alunos acabam por desconhecer outras perpectivas de vida, diferentes daquela dos pais.

Construção

E para alimentar o banco de dados foi preciso ir atrás das séries históricas das olimpíadas científicas e desenvolver uma série de logaritmos capazes de unificar as informações e números produzidos por elas. Foram considerados os dados dos medalhistas que realizaram as últimas edições da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP), Olimpíada Brasileira de Matemática (OBM) a de Física (OBF) e a de Química (OBQ). A previsão é que o resultado de outras olimpíadas, como a de Língua Portuguesa e Astronomia, como exemplos, também sejam incluídas futuramente.

Todos os dados utilizados pelo grupo já eram públicos. O desafio então foi desenvolver uma maneira capaz de unificar em uma mesma base informações sobre a participação e o desempenho dos estudantes nas competições. "Não foi fácil. Cada olimpíada divulga de uma maneira diferente o resultado dos testes". São formatos digitais incompatíveis, formas diferentes de publicar o nome do aluno: ou abreviado ou sem acento; e até grafia errada", afirma um dos integrante da equipe que desenvolveu a plataforma. Todo o grupo prefere não se identificar.

“A equipe que idealizou a plataforma vê a ação como uma retribuição do ensino público, gratuito e de qualidade que tiveram nas universidades que estudaram.

A equipe vê a ação como uma retribuição do ensino "público, gratuito e de qualidade" que tiveram nas universidades que estudaram. Os integrantes são, em sua maioria, formados pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), pela Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal do Ceará (UFC). Há também egressos da Universidade Estadual do Ceará e uma integrante, também brasileira, formada pela Universidade Harvard.

E para garantir a confiabilidade e fidelidade das informações foi preciso que os integrantes desenvolvessem algoritmos capazes, por exemplo, de reconhecer que um nome do medalhista, sem acento e outro com acento, se referia à mesma pessoa. Ou ainda, capazes de menosprezar determinados erros de grafia com vistas a não deixar de contabilizar o desempenho do estudante na prova. "O nosso desafio era reconhecer que registros eram iguais. Para identificar uma digitação errada na hora do cadastro, tivemos que criar um algoritmo baseado na lógica de distanciamento de vetores e assim não deixar de vincular o resultado à mesma pessoa", afirma um dos membros.

Primeira Chance

A ideia de produzir uma ferramenta escalável de alcance nacional ocorreu depois da experiência do grupo na condução de um outro projeto, o Primeira Chance – mesmo nome da associação criada pela equipe para coordenar ambas as iniciativas. Pela ação, foram mapeados alunos talentosos pobres que residem no Ceará, local de origem de grande parte da equipe. Depois, os estudantes foram contatados pelos integrantes, e após entrevistas, os alunos foram selecionados para ganharem bolsas em duas das melhores escolas de Fortaleza.

Mesmo parecendo ter sido simples o processo, os integrantes afirmam que foi quase um desafio encontrar alguns dos alunos mais talentosos da rede pública daquele estado. "Chegar até os nomes foi a parte mais fácil. Mas foi difícil entrar em contato com eles. Tivemos que enviar cartas para a escola e ir até às suas cidades, já que muitos não tinham telefones e o acesso até suas casas [na zona rural] era difícil", fala um dos idealizadores.

Quando, enfim, conseguiram ter acesso a uma dezena deles – foram mapeados cerca de 250 -, os estudantes ainda precisaram ser submetidos a outros "filtros". Quer dizer, os alunos têm que passar por aplicação de provas e participar de uma bateria de entrevistas. "Nesse momento, avaliamos as habilidades cognitivas e não-cognitivas como a persistência. Escolhemos aqueles alunos que mesmo tendo levado muita pancada na vida ainda sonham em mudar o mundo", diz um dos idealizadores da plataforma.

Segundo os membros, o objetivo do Primeira Chance é "dar um pequeno empurrão, para que o aluno que corre atrás dos seus objetivos consiga deslanchar" em suas pretensões acadêmicas e profissionais. "Nossa função é abrir oportunidades, estimular o crescimento dos alunos, orientá-los por meio de mentorias e deixá-los, a partir daí, seguirem os seus rumos", fala um dos membros.

Atualmente, desde 2011 foram selecionados cerca de 25 alunos. O número limitado decorre da estrutura enxuta da equipe, também da rígida seleção que é feita no programa e do cuidado que a equipe tem em "manter a qualidade do processo". Antes, utilizando apenas recursos dos próprios membros, o Primeira Chance conseguiu o apoio de doadores individuais além de uma dezenas de empresas e instituições, especialmente às ligadas ao ensino e a identificação de talentos.

Depois de selecionados, o grupo viabiliza, por meio de instituições parceiras, bolsas de estudo para o ensino médio. Além disso, há ainda a concessão de auxílio alimentação, transporte e para a compra de materiais didáticos. É possível também a concessão ou ajuda de custo para arcar com as depesas do novo local de moradia, a cidade de Fortaleza, onde os alunos selecionados passarão a estudar em uma escola de referência. Cada estudante têm um custo aproximado de R$ 4,5 mil por ano.

Depois do ensino médio gratuito, quando conseguem passar no vestibular de instituições de ponta, inclusive as privadas de excelência, o grupo ainda os coloca em contado com eventuais "padrinhos" que se oferecem para financiar os estudos dos jovens no ensino superior.

Estudantes mapeados

Um dos estudantes selecionados pelo Primeira Chance e que foi mapeado pelo Garimpar é um jovem cearense de 18 anos. Assim como as normas de sigilo do grupo, a identificação dos selecionados também é preservada, especialmente para que o seu futuro ingresso e permanência como bolsista em instituições de ensino não cause desconforto ao estudante. Como muitos vêm de uma realidade socioeconômica carente, tal exposição pode causar problemas de adaptação em universidades onde a maioria dos alunos é de alta renda.

Nascido no sertão nordestino o jovem selecionado pelo programa tem uma origem humilde. No entanto, mesmo com eventuais adversidades, sua trajetória escolar foi marcada por uma série conquistas. Ele foi medalhista das olimpíadas de matemática, física e química, em várias edições. Outro ponto que também chamou atenção da equipe do Primeira Chance foi a resiliência do estudante.

Com a bolsa que garantiu no ensino médio o jovem conseguiu, ao fim do ciclo, passar no concorrido vestibular do Instituto Militar de Engenharia (IME-RJ). No entanto, a escolha dele foi por outra escola de excelência já em São Paulo, o Insper – instituição privada reconhecida pelo ranking internacional do jornal Financial Times. Como não tinha condições de pagar a mensalidade do Insper que chega a ultrapassar os R$ 3 mil, o ingresso só foi possível por uma bolsa conquistada pelo jovem. Um doador resolveu financiar sua vinda para São Paulo, sua moradia e outras despesas pessoais além de ter garantido a bolsa de estudos na instituição.

Projetos como o Primeira Chance e o Garimpar são consideradas iniciativas "interessantes", segundo Maria Amélia Sallum, diretora executiva do Ismart – ONG voltada à identificação de alunos talentosos que estudam em escolas de São Paulo e do Rio de Janeiro. "Quando tive contato com o Garimpar, fiquei super entusiasmada. Queremos ter acesso à plataforma para aprimorarmos ainda mais o nosso próprio banco de dados que já utilizamos nos nossos processos seletivos", diz.

Maria Amélia ainda destaca algumas habilidades possíveis de serem observadas em medalhistas de olimpíadas de conhecimentos. "O conceito de talento é amplo. Mas o menino que faz a olimpíada é alguém que corre atrás dos seus objetivos, gosta de desafios, de se superar, tem atitude e é persistente. Todos esses atributos contribuem bastante para que ele consigar ir atrás do que ele quer", diz a diretora do Ismart.

Um dos grandes desafios, contudo, é saber identificar tais potencialidades e reconhecer os estudantes que tem um destacado diferencial. Tal dificuldade, presente na realidade brasileira, fez com que o Ismart desenvolvesse um guia autoinstrucional, no formato passo-a-passo, para que os professores possam melhor identificar estudantes talentosos.

A importância das olimpíadas também é destacada por César Camacho, diretor geral do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), que organiza a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (Obmep). "Olimpíadas como a Obmep são instrumentos muito poderosos que ajudam a conduzir o aluno a trilhar o caminho até o estudo superior. Infelizmente, contudo, ainda existem secretarias de ensino que acham que a olimpíada é apenas uma atividade recreativa", fala.

Camacho ainda afirma que a ausência de bancos de dados consolidados interligados entre as diversas olimpíadas decorre do pouco tempo de existência desses eventos. "Elas são relativamente jovens, a Obmep, por exemplo está agora em sua 10ª edição. Começamos em 2005", diz.



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