Política

Prevent Senior ocultou mortes em estudo sobre cloroquina; dossiê revela que pacientes foram tratados com ‘kit covid’ sem saber

CPI investiga tratamentos feitos sem autorização ou informação a pacientes e mortes suspeitas não informadas aos familiares. Nove pacientes 'cobaias' morreram durante a pesquisa, mas os autores de estudo da empresa só mencionaram duas mortes.


16/09/2021

WSCOM com Estadão



Um grupo de 15 médicos que diz ter trabalhado na Prevent Senior encaminhou para a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid no Senado um dossiê no qual informam que integrantes do chamado “gabinete paralelo” do governo de Jair Bolsonaro usaram a operadora de saúde como uma espécie de laboratório para comprovar a tese de que o chamado kit covid (hidroxicloroquina e azitromicina) era eficiente contra a doença e revelaram que pacientes não foram informados do tratamento experimental, o que é ilegal. O documento, assinado pelos profissionais, foi revelado pela GloboNews, de acordo com a reportagem do Estadão, que também teve acesso ao material.

Em entrevista à emissora de TV, médicos acrescentaram que a operadora de saúde omitiu mortes pela doença num estudo na qual pretendia comprovar a eficácia do kit covid. Segundo os profissionais, nove pacientes vieram a óbito, mas o estudo relata que foram apenas dois casos. Esse estudo foi citado pelo presidente Jair Bolsonaro como prova da sua falsa tese de que as pessoas não precisavam fazer quarentena ou usar máscara porque a combinação de cloroquina e azitromicina cura a doença, o que contraria a Organização Mundial de Saúde (OMS).

O documento sob análise da CPI não é apócrifo. Dele constam os nomes dos 15 médicos e uma série de mensagens de WhatsApp apresentadas como prova. Uma delas é do diretor da Prevent, Fernando Oikawa. “Iremos iniciar o protocolo de HIDROXICLOROQUINA + AZITROMICINA. Por favor, NÃO INFORMAR O PACIENTE ou FAMILIAR, (sic) sobre a medicação e nem sobre o programa”, orientou o executivo no grupo de médicos, segundo revelou a GloboNews.

O dossiê apresentado aos senadores alerta que o estudo foi feito com mais de 700 pacientes – e não os 200 declarados no projeto inicial. Informa ainda que a média de idade das pessoas que foram submetidas à pesquisa é superior a 60 anos, o que sugere a inclusão de grande número de pessoas idosas “e, portanto, grupo considerado de maior risco da covid-19”.

A denúncia levada pelos médicos à CPI afirma ainda que, no ano passado, após críticas do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta a subnotificações de mortes de pacientes da operadora e ao atendimento da Prevent Senior a idosos, a diretoria da empresa “fez um pacto com o gabinete paralelo para livrar a empresa das críticas”. Segundo o dossiê, Nise Yamaguchi, que é oncologista, “frequentava a Prevent Senior para alinhar os tratamentos precoces”. Os médicos afirmam que ela “assessorava pacientes internados na Prevent Senior que eram considerados ‘especiais’ pelo governo”.

O “gabinete paralelo” é um grupo extraoficial que aconselhou Bolsonaro sobre ações a serem tomadas pelo governo no combate à covid-19. A existência de uma equipe fora da estrutura do Ministério da Saúde que era ouvida para definir políticas públicas foi revelada por Mandetta, que demitido do cargo após se negar a assinar protocolos que recomendavam o uso de medicamentos com ineficácia comprovada, como cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina, contra a doença.

Prevent Senior anunciou, em março do ano passado, que faria o estudo para testar a eficácia da hidroxicloroquina associada ao antibiótico azitromicina contra a covid-19. A pesquisa foi suspensa logo em seguida, em 20 de abril, pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). O órgão descobriu que os testes com pacientes haviam começado antes de a operadora receber o aval para a realização da pesquisa, o que é proibido no País.

Em 5 de abril do ano passado, Bolsonaro divulgou em seu Twitter uma ‘live’ sobre hidroxicloroquina em que participaram Pedro Batista Junior, diretor executivo da Prevent Senior, e o médico virologista Paolo Zanotto, suspeito de fazer parte do gabinete paralelo. “Esclarecedores dados e pró-atividade contra o covid-19”, escreveu o presidente.

Na transmissão ao vivo, Zanotto e Batista Jr. são questionados sobre o motivo de o governo Bolsonaro não ter adotado, até então, um protocolo para medicar hospitalizados com hidroxicloroquina.

Zanotto diz que, naquele momento, Yamaguchi e o médico Luciano Dias Azevedo – também apontado como integrante do gabinete paralelo – estavam com o “high brass” (alto escalão) do governo, em Brasília, discutindo a questão “muito mais perto do que vocês imaginam”.

“Não só ele (Mandetta) está errado, como ele foi avisado que ele estava errado na figura do Wanderson de Oliveira (então secretário de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde), que todo trabalho que a gente fez desde que a gente começou a contratar o grupo do Pedro, ele foi informado”, disse Zanotto. “A gente não está escondendo nada de ninguém. A gente fez um arrazoado dos dados do Pedro, Luciano visitou o Pedro, trouxe para esse grupo informações impressionantes.”

Segundo Zanotto, os dados da Prevent Senior foram enviados para a Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde e “deveria ter acabado na mão do ministro, mas a gente não ouviu nada em resposta”. O médico não dá os nomes de quem teria ouvido seu grupo.

“De quem a gente ouviu resposta, foi das pessoas de outro nível da administração pública. E essas pessoas imediatamente começaram a trabalhar com o nosso grupo e estão trocando informação e estão aprimorando todos esses dados que foram passados pelo Pedro. Existe um entendimento muito interessante entre a Prevent Senior e o governo federal brasileiro”, disse Zanotto.

O grupo de médicos que apresentou a denúncia contra a operadora relatou à CPI que, no ano passado, a Prevent Senior comprou mais de 3 milhões de comprimidos de medicamentos do tratamento precoce, como cloroquina e ivermectina. “Quantidade suficiente para medicar cerca de 500 mil clientes da operadora”, dizem no documento.

Em 18 de abril, Bolsonaro publicou em uma rede social que a Prevent Senior havia lhe informado sobre alguns resultados do estudo. Segundo o presidente, 412 pacientes haviam optado por tomar hidroxicloroquina, 8 foram internados e nenhum intubado. “O número de óbitos foi zero. O estudo completo será compartilhado em breve”, registrou Bolsonaro.

O grupo que denuncia a Prevent afirma que o médico Rodrigo Ésper, da operadora, sugeriu, em um áudio no WhatsApp, revisar os números do estudo citado por Bolsonaro. Ésper, em 19 de abril, enviou um áudio ao grupo de pesquisadores do estudo. A GloboNews revelou a mensagem, que foi obtido também pelo Estadão.

“A gente precisa revisar esses dados no máximo até amanhã de todos os pacientes”, afirma. “A gente está revisando todos os 636 pacientes do estudo. Já tem mais ou menos uns 140 revisados, mas a gente precisa acabar isso até amanhã.”

Ésper diz ainda que os dados precisam ser “assertivos e perfeitos porque o mundo está olhando para a gente”. “A gente precisa ser perfeito”, afirma. “Até o presidente da República citou a gente. Esse áudio tem que ficar aqui, não pode sair.”

Prevent Senior diz que vai processar médicos por ‘denunciação caluniosa’

Procurada, a Prevent Senior divulgou nota em que “nega e repudia denúncias sistemáticas, mentirosas e reiteradas que têm sido feitas por supostos médicos que, anonimamente, têm procurado desgastar a imagem da empresa”. “Em decorrência disso, está tomando as medidas judiciais cabíveis para investigar todos os responsáveis por denunciação caluniosa (e outros crimes) sejam investigados e punidos. Os médicos da empresa sempre tiveram a autonomia respeitada e atuam com afinco para salvar milhares de vidas.”, afirma a operadora.

“Importante lembrar que números à disposição da CPI demonstram que a taxa de mortalidade entre pacientes de covid-19 atendidos pelos nossos profissionais de saúde é 50% inferior às taxas registradas em São Paulo”, continua.

A Prevent Senior informou, na nota, que vai pedir investigações ao Ministério Público para apurar “as denúncias infundadas e anônimas levadas à CPI por um suposto grupo de médicos”. “Estranhamente, antes de as acusações serem levadas à comissão do Senado, uma advogada que representa esse grupo de médicos insinuou que as denúncias não seriam encaminhadas se um acordo não fosse celebrado. Devido à estranheza da abordagem, a Prevent Senior tomará todas as medidas judiciais cabíveis”, afirmou a operadora.

O diretor executivo da operadora, Pedro Benedito Batista Júnior, tinha depoimento marcado para esta quinta-feira, 16, na CPI, mas ele não compareceu. A Prevent Senior justificou a ausência pela falta de “tempo hábil”, já que “o prazo mínimo para atender a uma convocação desta natureza é de 48 horas”.

A CPI também aprovou um requerimento e vai pedir informações ao Conselho Regional de Medicina de São Paulo relacionadas ao processo de sindicância que apura a conduta de profissionais da Prevent Senior.

O médico Paulo Zanotto afirmou à reportagem que “ninguém disseminou o tratamento” precoce. “Foi perguntando para nós o que estava acontecendo em termos de tratamento precoce. Foi perguntado pelo Arthur Weintraub (irmão do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub). Eles tinham perguntado o que estava acontecendo nessa área”, disse. “O tratamento precoce não foi implementado como política de Estado, não houve essa realização. O que aconteceu no Brasil foi a disponibilização de fármacos em alguns lugares do Brasil”, afirmou.

Procurada, Nise Yamaguchi disse ao Estadão desconhecer que a Prevent Senior fosse validar protocolos do governo. A médica afirmou ainda que não tem nenhum vínculo científico com a operadora e nem interferência nos protocolos de pesquisa que eles realizam.

O Palácio do Planalto não se manifestou.



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