Cultura
Musical sobre Museu Nacional humaniza a ancestralidade
29/04/2023
Um palácio construído com a fortuna de um traficante de pessoas, que negocia vantagens para cedê-lo a uma corte colonial, que, por sua vez, dá lugar a um império que descende dela e começa a reunir objetos deslocados de diferentes culturas, entre elas, as que eram traficadas e exterminadas pela colonização. Os esqueletos no armário do Palácio de São Cristóvão não ficam de fora do musical Museu Nacional [Todas as vozes do fogo], que fará seu último fim de semana de apresentação no Teatro Riachuelo, no Rio de Janeiro.
O palácio era tudo isso, mas também lugar de produção de pensamento sobre um novo país, de nomes como Bertha Lutz; de formação de uma multidão de pesquisadores e de apresentação da ciência a milhares de estudantes que enchiam seus corredores em excursões escolares. O musical conta a história de um palácio que era tudo isso e foi consumido pelo fogo com seu acervo de 20 milhões de itens, e do país que o ergueu com toda essa complexidade e o deixou queimar.
Quem recebe o público para essa visita guiada é Luzia, o crânio humano mais antigo do Brasil e sobrevivente do fogo que destruiu o palácio em 2 de setembro de 2018. A “primeira brasileira” é interpretada por Ana Carbatti, indicada ao Prêmio Shell de melhor atriz deste ano por Ninguém Sabe Meu Nome, em que uma mãe preta reflete sobre como deve criar seu filho em uma sociedade racista.
Ana conta, em entrevista à Agência Brasil, que em Museu Nacional sua personagem é uma ancestral, mais no sentido humano no que no sentido solene desta palavra. “A princípio, eu tinha uma preocupação de que ela tinha que ser séria, em respeito a essa ancestralidade, em respeito a esse crânio sobrevivente. Mas, depois, a gente foi entendendo que não. Que a ideia era humanizar essa ancestralidade. Então, isso fez o trabalho ficar muito divertido pra mim. E, hoje, fazer a Luzia é uma alegria, me divirto muito”.
A Luzia que conduz a narrativa da peça lança mão do humor e da perspicácia para acessar o público em lugares diferentes da comoção com a tragédia. Museu Nacional não trata apenas disso, avisa Ana Carbatti, mas também de esperança e até de utopia.
“Se a gente perder a esperança, não precisa nem subir no palco. Subir no palco só pra falar das nossas mazelas, não precisa. Não é só pra isso. Acho que o teatro tem muitas funções, não pode ser só essa. A cultura é uma esperança, em si”.
Museu Nacional [Todas as vozes do fogo] é escrito e dirigido por Vinicius Calderoni, com direção musical de Alfredo Del-Penho e Beto Lemos, com 20 músicas originais. A diretora de produção e idealizadora do espetáculo, Andréa Alves, é da Sarau Cultura Brasileira, que completa 30 anos. O elenco conta com Adrén Alves, Alfredo Del-Penho, Beto Lemos, Eduardo Rios e Ricca Barros, todos da Companhia Barca dos Corações Partidos, e convida os atores e atrizes Adassa Martins, Aline Gonçalves, Felipe Frazão, Júlia Tizumba, Lucas dos Prazeres e Rosa Peixoto, além de Ana Carbatti, que concedeu entrevista exclusiva à Agência Brasil.
O musical passou por São Paulo no ano passado e encerra, nesta semana, as apresentações no Rio de Janeiro. Há expectativa de novas montagens em outros estados, ainda sem datas e locais definidos.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista com Ana Carbatti:
Agência Brasil: Acredito que nós, jornalistas, na época, não conseguimos traduzir para o público a dimensão do que significou essa tragédia, a perda que tivemos como sociedade e civilização com tudo que se perdeu no incêndio no Museu Nacional. Você acha que o teatro consegue dar conta de dimensionar isso?
Ana Carbatti: Não. Eu acho que o teatro não consegue dar conta. Eu acho que o máximo que o teatro pode fazer é abrir possibilidades, abrir um horizonte, abrir discussões. Eu acho que esse nem é o papel do teatro. Eu acho que a gente tem um papel parecido com o de vocês, de reportar e reunir diferentes depoimentos e diferentes sentimentos, para que a gente possa enxergar as coisas de diferentes pontos de vista. E eu acho que, nesse sentido, o espetáculo cumpre com esse papel, de apresentar que não é só o museu, não são só objetos, não são só essas pessoas que estão ali. É uma história que foi escrita por diferentes mãos e de diferentes formas. E o que a gente faz com isso daqui pra frente, o que que tá nas nossas mãos para encaminhar um futuro possível.
Agência Brasil: Aqui, no Rio, vocês tiveram um público que viveu o Museu Nacional, que passeou nele e o conheceu. A reação desse público foi diferente?
Ana Carbatti: A gente teve vários pesquisadores que vieram assistir ao espetáculo, estudantes, pessoas que fizeram mestrado e doutorado no museu. Essas pessoas vêm com uma energia muito diferente do geral. Elas vêm com uma energia mais difícil de explicar, porque é uma coisa muito de corpo, daquela vibração do momento, mas eu sinto, sim, que aqui a relação com o objeto que esse espetáculo trata é uma relação mais delicada, mais profunda. E tem a ver com a questão da ficha demorar para cair. E não só num lugar de “que pena que pegou fogo, que tristeza”. É mais do que isso. Aqui no Rio de Janeiro, a relação das pessoas com esse espetáculo é mais delicada, sim. É mais profunda. Mas, mesmo em São Paulo, a gente sente que, além da apreciação estética, que é a função do teatro, o espetáculo não fala só do museu, ele fala da história do Brasil, o museu é a história do Brasil. Eu acho que essa é a grande sacada nesse espetáculo. Não é só sobre o museu, é sobre como a gente constrói o nosso patrimônio, sobre como o Brasil constrói seu patrimônio. Então, eu acho que isso fala a todos os brasileiros, em qualquer lugar do país. E, quiçá, se a gente tiver um futuro internacional, eu acho que vai falar a todas as pessoas do mundo, em qualquer lugar do mundo.
Agência Brasil: E, como carioca, você frequentou o museu e teve uma relação com o museu? O que você tinha de lembrança com esse museu que você reencontrou com a peça?
Ana Carbatti: A Quinta da Boa Vista foi, na minha infância, o lugar da reunião, de fazer piquenique com a família, e depois visitar o museu e o zoológico. E a minha família é muito grande, tanto a materna quanto a paterna, e a gente se reunia muito. Então, eu visitei muitas vezes esse museu. Também com a escola, várias vezes. Com pai, mãe, a família. Meu irmão é antropólogo e fez mestrado e doutorado lá. Tenho uma história íntima com esse espaço físico. E eu fui educada no período da ditadura. Não tive nenhum contato com as informações sobre a história da Quinta da Boa Vista que a gente traz no espetáculo. Só fui ter acesso muito mais tarde, porque na escola a gente não falava disso. Falava que era residência imperial e isso que era importante.
Agência Brasil: E não que era um palácio construído por um traficante de gente.
Ana Carbatti: Absolutamente. Na minha época, isso não era assunto de escola. Eu fui educada no período da ditadura. Hoje, pensar nesse espaço com essa outra perspectiva é uma coisa bem marcante.
Agência Brasil: Como conceber a personalidade e a personagem Luzia a partir de um texto e de um fóssil?
Ana Carbatti: Não foi fácil. Foi, primeiro, um grande mistério, porque, como você dá corpo pra um esqueleto de uma forma que não seja óbvia, caricata. E o Vinícius é um diretor muito generoso e muito aberto, tem uma escuta incrível para qualquer movimentação dos atores. O texto foi criado em sala de ensaio, tudo foi criado nesses quatro meses de trabalho. Então, isso foi deixando de ser um mistério ao longo do processo. Como era uma construção coletiva, com o Vinícius com a função de amarrar essas ideias e passar para o público de uma maneira que comunicasse de uma forma mais efetiva, foi facilitando o processo, foi tirando o mistério. Pra mim, a palavra-chave é anfitriã. A mulher mais antiga. Essa ancestralidade que é uma coisa com a qual tenho intimidade, por causa da minha história pessoal, foi um mote pra mim. Ela é a primeira e a anfitriã que recebe e conduz as pessoas. A princípio, eu tinha uma preocupação de que ela tinha que ser séria, em respeito a essa ancestralidade, em respeito a esse crânio sobrevivente. Mas, depois, a gente foi entendendo que não. Que a ideia era humanizar essa ancestralidade. Então, isso fez o trabalho ficar muito divertido pra mim. E, hoje, fazer a Luzia é uma alegria, me divirto muito. Deixo o corpo ir falando, e o texto do Vinícius é um texto muito vivo. A história dessa peça não é uma história que se repete. Todo dia faço uma Luzia nova. É como se ela entrasse em cena para dizer que o museu é um ato.
Agência Brasil: Você também fez a Clementina de Jesus no teatro. Queria saber como essas duas mulheres conversam e como conversam com você.
Ana Carbatti: São dois presentes na minha vida. Quando fiz Clementina, há 10 anos atrás, eu nem era fã, eu conhecia, mas eu não tinha todos os álbuns e ouvia diariamente em casa. Esse contato profundo com ela e com a história dela mexeu muito comigo. A Luzia e a Clementina falam muito entre si por essa questão óbvia da ancestralidade. O fato de a Clementina ter ganhado notoriedade já como uma senhora, uma anciã, foi o que deu e vai dar a ela no futuro esse caráter de que a gente pensa nela como um ser, não é só mais uma cantora que apareceu. Os ensinamentos e transformações que ela trouxe para a música brasileira, a representatividade que ela trouxe, nos mais profundos sentidos dessa palavra, para o cancioneiro brasileiro é gigantesca. Ela chega em um momento em que ela transforma a música brasileira e a pesquisa musical brasileira. E a Luzia, enfim, 12 mil anos, né? Eu acho que Luzia e Clementina falam entre si a história desse país e desse continente, sobre em que base a gente constrói as nossas vigas e os nossos pilares. E, comigo, elas são um presente. É um presente muito grande para uma atriz madura ter esses personagens que vão muito além do meu corpo físico e do meu pensamento como indivíduo. É muito engrandecedor e muito especial.
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