Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

Viajar no século XX – como era assustadora a minha ignorância!


11/04/2017

Foto: autor desconhecido.

"Se nossas vidas são dominadas pela busca da felicidade, talvez poucas atividades revelem tanto a respeito da dinâmica desse anseio — com toda a sua empolgação e seus paradoxos — quanto o ato de viajar. Ainda que de maneira desarticulada, ele expressa um entendimento de como a vida poderia ser fora das limitações do trabalho e da luta pela sobrevivência. Mas raramente se considera que as viagens apresentem problemas filosóficos — ou seja, questões convidando à reflexão além do nível prático. Somos inundados por recomendações sobre os lugares para onde viajar, mas pouco ouvimos sobre como e por que deveríamos ir — embora a arte de viajar pareça evocar naturalmente uma série de questionamentos nem tão simples ou triviais, cuja análise poderia contribuir, de forma modesta, para uma compreensão daquilo que os filósofos gregos chamavam lindamente de eudaimonia, ou desabrochar humano".( A Arte de Viajar – Alain de Botton)

Outro dia, conversando com sobrinhos recém chegados de Florença onde moraram por um ano (pós graduação), e ouvindo eles a falar de viagem e todas as facilidades de hoje, (Alugar carro, blogs, GPS, mapas, reservas antecipadas, etc), fiquei a pensar como era viajar no século passado, antes de se ter a vida digital. E assim do nada, comecei a contar estórias pitorescas e me dei conta de que eu sou um ser em extinção, e naqueles tempos, era louca e aventureira, aliás o mundo, por se lançar nos mapas, sem mapas ou quaisquer senso de orientação, não era para qualquer um, inda mais uma!

Lembrei de quando fui a primeira vez à Europa, em 1975, para estudar Inglês em Londres. Depois de um mês, fui viajar por Paris, Estrasburgo, Zurique, Berna, Lucern, Roma, Florença, Barcelona e Lisboa. Tudo isso em dois meses de voos, trens, ônibus e sonhos. Como não tínhamos roteiro pré-estabelecido (somente uma passagem aérea bem grossa em papel, travels cheques e um passaporte não válido para Cuba!), tudo era pelo mapa da intuição ou conhecimento prévio de jovens curiosos.

Tão pouco tínhamos o savoir fair de viajar, mas na precariedade da experiência, tínhamos muitas malas. Não resisti aos mercados londrinos e me enchi de túnicas indianas de espelhinhos! O companheiro de viagem, de livros de arte e pincéis e tintas e papel couché. Aprendi aí que, não se pode andar com tantas malas! Deixávamos essas benditas no aeroporto e numa malinha fazíamos as mudas para aqueles 5/6 dias nos lugares. Era inverno, então imaginem nesses tempos a aventura o que era vestir pulovers emprestados das primas, casacos que nem sempre estavam na moda, e gorros ridículos! Mas, o conforto era preciso. Por conta dessa operação aeroporto, sempre chegávamos horas antes dos voos para poder trocar as mudas de roupa suja com as limpas. Sim , lavamos roupa na pia do hotel, com sabão de coco que minha mãe cuidadosamente me indicava. Uma vez, queimei um suéter lindo emprestado porque tinha colocado-o para secar no aquecedor do quarto. Cada uma! Pela falta de dinheiro, sempre escolhíamos a hora dos voos em hora de almoço ou jantar….filar a boia era preciso. Nos voos da Pan Air!

Viajar era para os fortes, e a vida toda os governos me dificultara à vida. Nessa viagem mesmo, existia uma lei que tínhamos que depositar 12.000 Cruzeiros por um ano no banco. E depois disso, com a inflação galopante, perdíamos tudo. As quantias eram parcas e por isso em Paris, era Crepe Suzette sempre com uma taça de vinho e nada de água ou café…Numa noite extravagante – um prato de frutos do mar, com os mariscos saltitantes e uma taça de vinho branco. Éramos pobres e sabíamos!

Chegávamos na cidade, íamos à estação de ônibus (porque era onde se tinha hotéis mais baratos), fazíamos check in, e depois de ter o mapa da cidade, escolhíamos os locais de visita e imaginávamos quantos dias seriam suficientes para aquele programa. Aí vinha a operação mais complicada. Fazer as contas de quanto dinheiro iríamos precisar. Em tempos de Libra, Franco Francês, Suiço, Lira, Pesos e Escudos, tínhamos que entender de câmbio para não trocar demais nem de menos, inda mais com as moedas – sempre gastávamos as restantes no aeroporto com chocolate, mas sempre, tínhamos prejuízo com aquelas que teimavam em não comprar nada e viravam souvenir nas gavetas. O dinheiro era curtíssimo, e comíamos na maioria das vezes nas estações de trem. Lembro que, em Zurique, filávamos a boia dos ferroviários, um PF barato e bom. Só não tínhamos os macacões. E quando passeávamos nas Strasses, a contemplar os Trams, a distinção de classe era gritante. Aquele povo chique de casacos de peles, e nós com nossas roupinhas caseiras e disformes. Mas o desejo de conhecer o mundo era tanto, que tudo era pouco diante da felicidade de jogar moedas na Fontana de Trevi, sentar nas Boulevards de Paris, ou saborear um éclair pelas ruelas medievais de Estrasburgo. Virávamos os lugares pelo avesso. Museus, praças, livrarias, Mercados das Pulgas (para enlouquecer), um crepe ali, uma taça acolá, uma sopa de cebola, uma oração na Catedral Westminster, um assobio em Roma, um beijo na ponte de Florença. Tudo me dilatava a pupila. Com ou sem moeda local!

E sem mapa, nem planejamento prévio, nos lançávamos no abismo do desconhecido. Na Suiça, subimos até Greendwald, os Alpes Suiços, e por estar vestidos inadequadamente, ficamos cegos diante da luminosidade da neve; não tínhamos conhecimento cultural daquelas cidades e por vezes descartávamos programas importantes; fiquei boquiaberta diante de uma paisagem de inverno em Interlaken – Montanhas nevadas, lagos e pinheiros iguais aos calendários que mamãe pendurava na cozinha. Em Berna, me senti um brinquedo de filme de Pinóquio; em Lisboa fui ao cabeleireiro e fiz um permanente; em Roma comprei um óculos para me parecer com Sophia Loren ; em Londres um casaco jeans comprido que me dava um ar grunge e alternativo. Nada de Galeria Lafayette; nada de marcas; nada de make up; nada de nada. Quando entrei na Harrods em Londres, senti-me amiga da Rainha! E saí por aquelas portas giratórias imaginando uma vida de princesa. Mas a minha terminava logo ali. Mas , na Ponte de Waterloo, eu olhava para a Torre de Londres e pensava em Ana Bolena. Minhas aulas de História do Lyceu de Tambiá! E de scone em scone eu seguia pelo mundo, sem lenço e sem documento e sem nenhuma organização maior para me lançar nos espaços alhures e quem sabe intuir o tamanho desse mundo.

Entrei em muitas roubadas viajando no século passado. E também em estórias pitorescas: encontrei Paul & Linda McCartney nas calçadas de Bristol; dormi num quarto comunitário para caixeiros viajantes em Cuzco-Peru; meu ônibus engalhou numa ribanceira em Chichicastenango na Guatemala, e entrei em pânico achando que iria cair das alturas: avistei um ciclone por essas mesmas estradas; tomei vinho Alsaciano em Calmar; peguei metrôs de madrugada em Londres para buscar cunhado (Sérgio Tavares) na estação de Vitória Station, e tive medo de encontrar Jack, o estripador; subi as colinas em Pisa-Peru, e andei de carona na boleia de caminhão junto às Cholitas e aquele francês lindo com um chapéu mais lindo ainda; passei um ano novo nos Alpes Suiços (Goretti & Alain Antille), tomando quentão com pão feito pelos esquiadores que, com suas tochas, anunciavam o ano gelado! Comi marmota, um bichinho peludo que tem pele luxuosa para casacos; dancei muito nas noites Londrinas nos clubbers dos anos 70 e tantas coisitas…; fiquei muda no Sena e diante do Arco do Triunfo; Place de Vosges! Os vitrais da Catedral de Chartres; as rezas das mesquitas em Istambul; o Mar Egeu das Ilhas Gregas e meu topless of my own em Mikonos – Zorba era eu! Com Moussaka e Tzazique na mesa e octopus grelhado; meu espanto nas águas do Bósphorus; minha loucura no Grand Bazaar e todas as granadas e véus – meu saruel de florzinhas! Meu passeio de burro pelas ladeirinhas abissais da Ilha de Ios, Santorini! E suas ruelas brancas e igrejinhas azuis; as cerâmicas eróticas que compramos no México – Puebla, Antígua, pirâmides e um certo anel de ônix e Lápis-lazúli.

A minha bagagem gigante sempre vinha abarrotada de cartões, mapas, souvenirs de tickets e outras lembranças das casas de escritores, quadros famosos, ou música flamenca! Um vidrinho de curry, um chá breakfast , uma matrioska de Praga e o desejo de voltar em tantas cidades divinas e maravilhosas. Cidades que eu não tinha mapa nem direção, somente o olhar, o sentir, o perder pelas ruelas de Veneza e avistar uma gôndola acolá. Anônima Veneziana eu era!

Hoje, quando vejo as viagens, excursões e tantos planejamentos, fico a lembrar, até com uma certa nostalgia, o acaso que era se lançar no mundo. Ficar sem notícias de casa, dos medos de que alguém morresse na minha ausência ( e morreram muitos!), do olhar arregalado do meu pai vendo aquela menina que gostava dos países, das línguas e do des-conhecido para além de Goiana.

Ao término da conversa com meus sobrinhos Raphael, Bartyra e do quase adolescente Samuel, fiquei viajando nas minhas memórias viajantes. Tantas!

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa, 27 de novembro 2016
 


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