Rui Leitão

Jornalista e escritor.

Paraíba

Pequena memória para um tempo sem memória


18/03/2020

O historiador, produtor cultural e advogado Rui Leitão

Essa música de Gonzaguinha, gravada ao lado de seu pai em turnê pelo Brasil, no ano de 1981, tem tudo a ver com o momento atual, quando estamos tentando conhecer a verdadeira história do tempo em que vivemos sob uma ditadura militar que durou mais de duas décadas. “Pequena memória para um tempo sem memória” é uma homenagem aos que resistiram ao golpe militar de 64, pagando muitos deles com a vida, na luta pela liberdade política. Nos subterrâneos da ditadura ficaram registros de prisões injustas, torturas físicas e psicológicas praticadas contra brasileiros corajosos que não se intimidaram com a prepotência dos que estavam no poder pela força; assassinatos até hoje não esclarecidos, conterrâneos dos quais nunca se teve notícias. É chegada a hora de resgatarmos a memória desse triste período de nossa história, de forma real, em todos os seus detalhes, ainda que sórdidos e repugnantes.

“Memória de um tempo onde lutar/por seu direito/É um defeito que mata”. Foi uma época em que o simples fato de divergir da ordem estabelecida pelos ditadores, era considerado infração que poderia ser punida até com a morte. Eram apontados como “subversivos”, “comunistas”, o suficiente para entrar na lista dos que seriam encarcerados e torturados.

“São tantas lutas inglórias/São histórias que a história/Qualquer dia contará”. Gonzaguinha já alimentava a esperança de que um dia a verdadeira história seria contada. Algumas lutas podem até ser reconhecidas como inglórias porque empreendidas com derramamento de sangue e perdas de vidas. Mas são hoje reverenciados como heróis da resistência.

“De obscuros personagens/As passagens, as coragens/São sementes espalhadas nesse chão”. Anônimos que protagonizaram uma bela história de destemor e coragem, e deixaram plantadas sementes de bravura, idealismo e ousadia, na disposição de pugnar por aquilo que achavam justo e correto.

“De Juvenais e dos Raimundos/Tantos Júlios de Santana/Uma crença num enorme coração”. Tentou dar nomes aos que tombaram na luta sem ser lembrados. Faz referência ao primeiro preso político do regime, Júlio de Santana, pernambucano, ativista camponês. Toma seu exemplo de mártir como símbolo da batalha política que enfrentaram tantos outros brasileiros. No coração desses personagens a fé na vitória, acreditando que a luta empreendida não seria em vão.

“Dos humilhados e ofendidos/ Explorados e oprimidos/Que tentaram encontrar a solução”. Cansados de sofrer toda sorte de humilhação, opressões, desrespeitos à condição humana, não se intimidaram e caíram em campo buscando libertar-nos do constrangimento a que estávamos submetidos enquanto cidadãos.

“São cruzes sem nomes, sem corpos, sem datas/E tantos são os homens por debaixo das manchetes/São braços esquecidos que fizeram os heróis”. Ainda não se tem ao certo a estatística dos que morreram vitimados pela tortura. As cruzes que representam suas sepulturas não têm nomes, nem datas. Em algumas situações nem corpos existem, porque desapareceram misteriosamente. As manchetes dos jornais não podiam citá-los porque havia uma proibição de divulgar o que não era interessante para a imagem política dos ditadores. Mas foram, sem dúvidas, braços que construíram a nossa história contemporânea numa postura de puro heroísmo.

“São forças, são suores que levantam as vedetes/Do teatro de revistas; que é o país de todos nós”. Somos genuinamente um país da alegria, portanto, enquanto uma parte da população estava no lazer, se deliciando nos espetáculos dos teatros de revistas, heróis estavam derramando seus suores por nossa causa.

“São vozes que negaram liberdade concedida/Pois ela é bem mais sangue/Ela é bem mais vida”. A liberdade não é uma concessão, é uma conquista. Ninguém pode se dar ao direito de achar que pode nos conceder a liberdade no tamanho que lhe aprouver, porque a liberdade é condição natural da própria vida, de forma inteira, plena. E para reconquistá-la até o sangue deve ser oferecido como esforço objetivo.

“São vidas que alimentam nosso fogo da esperança/O grito da batalha/Quem espera, nunca alcança”. Como diria nosso conterrâneo Geraldo Vandré “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Essa história reacenderá sempre a nossa esperança por um mundo melhor, mais igualitário, menos injusto. Basta que nunca baixemos as bandeiras de luta, nem silenciemos o grito de batalha.

“Ê ê, quando o sol nascer/É que eu quero ver quem se lembrará/Ê ê, quando amanhecer/É que eu quero ver quem recordará”. Gonzaguinha faz uma espécie de cobrança para as gerações futuras. Ele perguntava se quando a vitória chegasse, saberíamos reconhecer a bravura desses nossos compatriotas. Estava preocupado em saber se quando o sol voltasse a brilhar, ficaríamos indiferentes ao que aconteceu na escuridão das noites dos anos de chumbo.

“Ê ê, não quero esquecer/Essa legião que se entregou por um novo dia/Ê eu quero é cantar essa mão tão calejada/Que nos deu tanta alegria/E vamos à luta”. Exorta os conterrâneos a não se deixarem cair no esquecimento. Cultuar a memória daqueles que foram ao combate para que hoje tivéssemos a oportunidade de reconquistar a liberdade. Enfim essa luta nunca deverá ter fim.

• Essa é uma das 250 crônicas que integram o livro “CANÇÕES QUE FALAM POR NÓS”.


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