Rui Leitão

Jornalista e escritor.

Geral

Nossa dívida histórica com a África


10/08/2024

O tráfico negreiro era uma atividade que existia no Brasil desde o século XVI. Para nosso país foram trazidos em torno de cinco milhões de africanos, sendo o lugar que mais recebeu indivíduos em situação de escravidão na história mundial. O transporte ultramarino de africanos, com o objetivo de escravizá-los era realizado em razão da necessidade permanente de trabalhadores nos engenhos. Os europeus consideravam os indígenas inapropriados para esse trabalho.

O sistema escravista dos comerciantes portugueses percebia ser esse empreendimento uma atividade bastante lucrativa, atendendo aos interesses da metrópole e da colônia. Daí porque se sentiram estimulados a estabelecer relações diplomáticas com os reinos africanos, possibilitando manter negócios, aos quais se incluía a venda de seres humanos. Os traficantes obtinham prisioneiros de guerra comprando-os, levando-os a pé até os portos, onde eram revendidos para os portugueses ou outros europeus, sendo marcados com ferro quente para identificá-los de qual comerciante eram e embarcados em navios que os transportavam para a América. Os navios negreiros comportavam, em média, de 350 a 400 africanos, aprisionados nos porões, tratados em condições desumanas, em viagens que duravam semanas. A mortalidade chegava a alcançar ¼ dos transportados.

Durante três séculos o Brasil recebeu escravos trazidos pela prática desse comércio ultramarino até 1850, quando foi decretada a Lei Eusébio de Queiroz. A proibição só aconteceu por conta da pressão dos ingleses para que o tráfico negreiro fosse acabado. Entre 1810 e 1812, foram apreendidos vários navios negreiros que estavam a caminho do Brasil. Quando o Brasil conquistou sua independência, a Inglaterra condicionou seu reconhecimento ao compromisso do Brasil em abolir essa atividade. Em 1826, o Brasil firmou um acordo em que se comprometia a abolir o tráfico em até três anos a partir da data de sua ratificação (que se deu em 1827). Em 7 de novembro de 1831, foi emitida a Lei Feijó, que proibia o tráfico negreiro e tornava livres os africanos que desembarcassem no Brasil após essa data. Na prática, foi letra morta porque nunca houve ação organizada para fiscalizar e impedir a chegada de africanos escravizados ao Brasil. Por isso, ficou conhecida como “lei para inglês ver”.

Ao se expirar o prazo de validade do acordo firmado entre o Brasil e a Inglaterra, em 1845, as autoridades brasileiras se manifestaram desfavoráveis à sua renovação, provocando uma reação mais enérgica dos ingleses contra o nosso país. O secretário de Assuntos Estrangeiros do Reino Unido, George Hamilton Gordon, mais conhecido como Lorde Aberdeen, propôs a lei que permitiria a marinha britânica aprisionar embarcações negreiras que estivessem trazendo africanos para o Brasil, sendo aprovada no Parlamento inglês em 9 de agosto de 1845. Essa Lei passou a ser chamada de Slave Trade Supression Act ou Bill Aberdeen.

Temendo um conflito contra os ingleses e dos impactos econômicos que isso poderia trazer, além da má repercussão internacional que a manutenção do tráfico negreiro provocava, fez com que o clima político se tornasse favorável para o fim do tráfico negreiro. Foi quando o ministro da Justiça, Eusébio de Queirós Coutinho Matoso Câmara, resolveu encaminhar um projeto para debater novamente sobre o fim do tráfico de africanos escravizados. A partir de 1850, então, a costa brasileira começou a ser monitorada para evitar que africanos fossem ilegalmente desembarcados em nosso território.

Castro Alves, em 1870, escreveu uma obra épica intitulada “Os Escravos”, em que narrava a situação sofrida pelas vítimas do trafico de escravos nas viagens de navio da África para o Brasil. Nela encontramos a poesia “O Navio Negreiro”, dividida em seis partes. O poeta descreve a horrível cena que se passa no convés do navio: “uma multidão de negros, mulheres, velhos e crianças, todos presos uns aos outros, dançam mas é o bailado do chicote no lombro, enquanto são chicoteados pelos marinheiros”.

Não podemos deixar de discutir a dívida histórica do Brasil para com a África. Esse crime de lesa-humanidade praticado por traficantes brasileiros, não pode permanecer sendo ignorada. O presidente Lula, em viagem ao continente africano, assim se pronunciou sobre a questão: “O Brasil tem compromissos políticos de ajudar o continente africano a se desenvolver. O Brasil tem dívida histórica com os africanos, e deve ser paga com solidariedade, com gestos políticos e com ajuda”. Afinal, oficialmente, o governo brasileiro reconheceu essa dívida histórica.


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