Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

Mulherio – Mulheres que Correm com as Letras


22/11/2017

Foto: autor desconhecido.

 

 

 

Quando a escritora inglesa Virginia Woolf foi convidada para dar uma palestra sobre As Mulheres e a Ficção, ela sentou-se à margem de um rio e começou a pensar sobre o sentido dessas palavras e observou o rio que refletia o que bem quisesse de céu e ponte e árvore flamejante. Woolf pensava: “Hoje vi uma mulher…hoje vi um avião…tudo pode acontecer quando a feminilidade tiver deixado de ser uma ocupação protegida…Mas que relação tem tudo isso com o tema…As mulheres e a ficção?”, perguntava ela. Já eu, por esses dias, também pensei sobre as mulheres e suas escritas. Hoje vi um mulherio de mulheres; uma colcha de retalhos, e o que terá acontecido já que a feminilidade já não é uma ocupação tão protegida assim?

Mais de um século depois, aparece a palavra MULHERIO, num evento/movimento que aconteceu no último 12-15 outubro, 2017 em João Pessoa. Quando ouvi primeiro o nome Mulherio das Letras, gostei tanto! Imaginei mulheres muitas, “acolegadas”, jogando conversa fora, seguidas das imagens de brisa e coqueiros da nossa cidade. Depois ouvi que a palavra poderia ser pejorativa, que tinha conotações outras (negativas inclusive!). Lembrei-me da Marcha das Vadias, que também teve implicações semânticas. E gostei. Gosto da transgressão das “Vadias”. E, particularmente, gosto de Mulherio também, e acho que transcende o sentido mais dúbio se o tem, para um lado mais solidário e de braços com a sororidade.

E o que foi esse Mulherio das Letras? Tomo emprestado respostas da matéria feita pelo jornalista Linaldo Guedes para o Correio das Artes/Outubro: “… um momento para o fortalecimento, a troca de experiências, a geração de projetos e parcerias entre as mulheres que produzem e promovem a literatura no Brasil…tem como proposta dar visibilidade aos trabalhos desenvolvidos por mulheres no mercado literário, Queremos criar um movimento, algo que marcará a história e trará igualdade. É algo prático, além de ideológico” .

A ideia do Mulherio surge com a consagrada escritora Paulista, radicada há décadas na Paraíba, e ganhadora do maior prêmio brasileiro de literatura, o Jabuti, Maria Valéria Rezende. Na Flip de 2016, numa conversa com outras escritoras, surge a necessidade desse encontro. A forma? Cooperativa e mais orgânica, no sentido de trocas de experiência. Com uma festa de abertura, e depois alguns pontos da cidade foram tomados por atividades lúdicas ou não das mulheres. A Fundação Casa José Américo, O Espaço Cultural, a Tamarindeira – Espaço Criativo, Espaço Psicanalítico EPSI, PB Tur, Energisa, foram alguns desses lugares.
Muitas Mulheres que, juntas fizeram um alvoroço em torno de literatura, escrita, escritoras, Mulherio das Letras Pretas, edição, distribuição de livros, criação, colcha de retalhos, poesia, resgate, Revistas, performances, cartas, rodas de conversas, diálogos,…Nunca se viu tantas mulheres circulando, animadas por tantos textos, dilemas, alegrias coletivas ou individuais.

E tantos aplausos para muitas e tantas. Destaque para a Anayde- Revista eletrônica de cultura feminista – Raquel Stanick, Mabel Dias, Ednamay Cirilo, Mayara Vieira, Cris Estevão, Tatiana Fraga, Thamara Duarte, Cassandra Figueiredo, Thais Gualberto, Sandra Raquew. Lara Bioni (que conheci pequenininha, amiga de Daniel, meu filho) – e seu – Visto Permanente Mulheres; Laís Chaffe, Blasfêmeas; Cidade Poema; Cantonera Caleidoscópio, Loas de Chegança; Grupo Sinta a Liga; Cria por Elas; Outras Carolinas; Glaucia Lima, Socorro Lira, Mariposa Cantonera, Vozes, Escaleras, Bondelê (e as meninas Mariana e Carolina).
Woolf falava que, para a criação de arte acontecer, era preciso três coisas: independência financeira, lazer ou tempo diletante, e um espaço todo seu (que podia ser um quarto, ou ainda um espaço literário, simbólico ou subjetivo). E passeando pelos jardins do Cabo Branco, pude sentir que, não mais nos cascalhos das Universidades de Oxford/Cambridge, caminhavam as mulheres. Elas ali, se lambuzavam de falas no auditório, ou cantoria no jardim, ao ouvir Conceição Evaristo (premiadíssima escritora de Ponciá Vicêncio – 2003, Becos da Memória 2006, Histórias de leves enganos a parecenças -2016) a falar de Maria Firmina Reis (1925-1917), Maranhense que, em 1825 foi considerada a primeira romancista brasileira., autora de Úrsula, o primeiro escrito por uma mulher negra brasileira. Tanto Úrsula como Maria Firmina só conhecemos graças aos estudos das mulheres, da crítica feminista, trazidas à luz pela academia e suas áreas de pesquisa e conhecimento a partir dos anos 70.

As mulheres sempre escreveram, dizia Woolf, mas seus escritos se perderam nos velhos diários, ou trancafiados nas gavetas, ou ainda obstruídos nas memórias do tempo; ou ainda nos corredores sombrios da História onde as figuras das gerações das mulheres estiveram enevoadas e tão tacanhamente percebidas (“Women and Fiction”). Woolf também justificava a ausência das mulheres nas artes e na escrita: “Como posso incentiva-las mais a empreenderem a tarefa de viver? Nunca fizeram uma descoberta de qualquer importância…nunca sacudiram um império…as peças de Shakespeare não são de sua autoria…qual a sua desculpa? Sem nosso trabalho esses mares não seriam navegados e aquelas terras férteis seriam um deserto. Geramos e alimentamos e lavamos e instruímos, talvez até os seis ou sete anos de idade….” Nas últimas décadas, os diários e as gavetas foram abertas, os corredores alumiados, e gerações de mulheres explodiram com suas escritas.

No último sábado, quando vi tantas mulheres lançando tantos livros infanto-juvenil, romances, crítica, contos, poesia, incluindo tantas autoras paraibanas: Joana Belarmino, Letícia Palmeira, Ana Apolinário, Madalena Zaccara, sem falar em produções anteriores de tanta gente, fiquei a pensar nas palavras dessas mulheres que nos antecederam, que usaram de pseudônimo; aquelas que viveram diante da indiferença do mundo e que os cânones literários tiveram tantas dificuldade de suportar, e a quem os homens perguntavam: “Escrever? E o que há de bom em você escrever?”(Woolf, Um teto todo seu).

E nas minhas divagações, como não lembrar das palavras proféticas de Woolf quando disse: “Minha crença é que essa poetisa que nunca escreveu uma palavra e que foi enterrada numa encruzilhada ainda vive. Ela vive em vocês e em mim, e em muitas outras mulheres que não estão aqui esta noite, porque estão lavando a louça e pondo os filhos para dormir. Mas ela vive; pois os grandes poetas nunca morrem, são presenças contínuas.”

E de louças e filhos, e de encruzilhadas e palavras ditas ou não, fazemos o mulherio nosso de todo e cada dia. E esse das letras, mostrou a que veio. Construiu-se em rede nacional, em colaboração com as vivências compartilhadas, criou novas formas de acontecer, e pois bem, O Mulherio das Letras de 2018, já tem data e lugar para se fazer dizer – Guarujá-SP. Simbora nós!

Ana Adelaide Peixoto
João Pessoa, 16 de outubro de 2017

OBS- Este texto foi publicado na Revista Premium, 7 de novembro 2017 


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