Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

Maria Maria


07/03/2017

Foto: autor desconhecido.

…Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria (Maria Maria, Milton Nascimento)


"Onde vive a mulher Selvagem? No fundo do poço, nas nascentes, no éter no início dos tempos. Ela está na lágrima e no oceano. Está no câmbio das árvores, que zune à medida que cresce. Ela vem do futuro e do início dos tempos. …Ela vive no verde que surge através da neve; nos caules farfalhantes do milho seco do outono; ali onde os mortos vêm ser beijados e para onde os vivos dirigem suas preces. ELA VIVE NO LUGAR ONDE É CRIADA A LINGUAGEM. ELA VIVE DA POESIA, DA PERCUSSÃO E DO CANTO."

No último sábado de carnaval, no Bloco Raparigas de Chico (Sebo Cultural), em meio a um monte de mulheres no palco, que cantavam “Joga Merda na Geni”, “A Banda”, e outras delícias do nosso Chico Buarque; e outras tantas que fantasiadas, dançavam no salão, eis que vi Maria. Fantasiada de alegria dela mesma, Maria estava toda pintada e deixava o corpo nu. Pulava, cantava, com uma espontaneidade e alegria e força e poder que, não é muito comum de se ver. As mulheres, por mais expostas que possam aparecer, essa exposição, raramente é de tamanha genuinidade. Aquilo me comoveu. Quando ouço música, essa alegria e poder também me inundam. Inda mais no Carnaval. Mas, Maria destoava de tudo e de todas. E o que vejo comumente? Muitas vezes uma alegria estudada, uma fantasia comportada, uma cachaça contida. Com o seu ar aborígene tabajara, Maria explodia. Maria Maria! Que uma vez Milton Nascimento cantou e virou hino de uma geração de mulheres que lutava pelos seus direitos. Maria Mulher! Cunhã! 8 de Março!

Ao me emocionar com a dança de Maria, imediatamente me lembrei do livro Mulheres Que Correm com os Lobos, de Clarissa Estés Pinkola, minha bíblia dos anos 90, e que tanto me elucidou e apaziguou, diante de questões existenciais. Na introdução das suas análises de mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem, Pinkola pergunta: “O que é a Mulher Selvagem?”. E analisa: “Do ponto de vista da psicologia arquetípica, bem como pela tradição das contadoras de histórias, ela é a alma feminina. No entanto, ela é a origem do feminino…Ela é a força da vida-morte-vida; é a incubadora…é a vidência…fluentes no linguajar dos sonhos….Ela sussurra os sonhos noturnos; ela deixa em seu rastro no terreno da alma da mulher um pêlo grosseiro e pegadas lamacentas. Esses sinais enchem as mulheres de vontade de encontrá-la, libertá-la e amá-la…Ela é ideias, sentimentos, impulsos e recordações. Ela ficou perdida e esquecida por muito tempo. … Ela é o cheiro da lama boa e a perna traseira da raposa … Ela é quem se enfurece diante da injustiça. Ela é a que gira como uma roda enorme. É a criadora de ciclos. ELA É A RAIZ ESTRUMADA DE TODAS AS MULHERES”. Maria dançante e emplumada de colares coloridos, era a representação dessa mulher estrumada!

Conheci Maria (Maria Elza) nos anos 70. Fundou a Oficina Azul em Miramar, junto com seu hoje ex-marido, o Professor Paulo Adisse, e onde construiu sua família de filhos. A Oficina era um lugar de vanguarda. Abriu portas para outros depois, como o Parahyba Café, Felipéia, Casa FurtaCor. Mas, diferente desses outros posteriores, era um lugar transgressor, porque a época assim pedia. Eram os tempos da ditadura e abertura política. Estávamos todas desgrenhadas e de sovacos cabeludos. Lá, tinha moda, bebida, happenings, danças, e toda uma ebulição inquietante de frequentadores de professores universitários e funcionários, que nem eu viria a ser em 1980. Muita doidera, muita paz e amor, mas muita política dos costumes também. Um encontro azul, de liberdades e irreverências.

Anos depois Maria abriu o restaurante Oca (Av. Almirante Barroso), com toda a sua mentalidade orgânica, vegetariana, etc, que não tinha ainda o status que tem hoje. Adorava ir almoçar lá quando ia fazer compras na Mesbla. Aos poucos, os funcionários caretas e conservadores das instituições ao redor, advogados e gente mais bem comportada, descobriram os sabores das bardanas e das raízes da vida. Isso tudo, Bela Gil nem tinha nascido. Comer gergelim era preciso!
Maria se chamava Elza. Mas depois, de caminho em caminho, adotou o Maria. Confesso que tive e tenho dificuldades até hoje. Tamanha a força do seu nome, da sua pessoa. Não sou nem nunca fui tão próxima da sua vida. Mas sempre tive muito afeto nos abraços que nos enroscamos vida afora. Admiro-a. Pela simplicidade. Pelo seu comprometimento com a vida, talvez pelo contrário do que Pinkola Estés classifica: “A mulher moderna é um borrão de atividade”. Maria trabalha duramente, mas sem borrão. É folha inteira e branca, que com sua arte do existir e do fazer, vai colorindo os seus parágrafos.

Já comprei muito das suas roupas alternativas. Já trocamos de roupa. De pele, como as focas. Quem sabe! E gersal fresco e salgadinho também comprava. Maria foi pro mato. Voltou. Dançou a dança da chuva. Do fogo. É uma deusa. Uma mulher poderosa. Assim como os lobos, “tem percepção aguçada, espírito brincalhão e uma elevada capacidade para a devoção. Os lobos e as mulheres são gregários por natureza, curiosos, dotados de grande resistência e força. São profundamente intuitivos e tem grande preocupação para com seus filhotes, seu parceiro e sua matilha”.

E nesse carnaval de tantas mulheres nuas e bombadas e empenadas/empanadas, ver uma mulher magra, seios à mostra, corpo de quem já tem a vida tatuada nos vincos e cabelos brancos, me deu uma dimensão – que sempre tive e tenho, de que, só embelezou ainda mais o meu pensamento e alguma certeza, se é que tenho alguma nessa vida, sobre o poder de um corpo que não cai! Tombar? Tombei! Como já canta a rosa choque Karol Conka

Uma vez, nos anos 80, numa Maratona de Biodança, com o Mestre Rolando Toro, de quem fui aluna durante alguns anos, fizemos um exercício de identidade que era assim: todos numa roda, seminus, gente de todos os tipos e formas e idades, e íamos ao meio da roda dizer o nosso nome. Na época, uma colega de mais de 50 anos, e eu tinha uns 30, com os peitos bem caídos (que qualquer mulher ligada à beleza institucionalizada, esconderia entre mil corpetes), o corpo bem marcado pelos anos, foi lá na frente, a passos largos e seguros, e disse de alto e bom tom: “Meu nome é Alícia!” Eu fiquei tão emocionada com tanta força e beleza que chorei! Se já tinha uma convicção sobre beleza feminina, corpo, tempo etc. (e eu era magra, e jovem), saí desse exercício sentindo o poder que a vida nos dá .

Eu também fui na roda dizer meu nome. E nunca me senti tão poderosa com meu corpo magro, seios pequenos, e um viço todo meu. Tal grito visceral, um grito da identidade of our own, não passava somente pelas dis-formas, mas mais pelas profundezas do nosso ser sem fim. Aqueles peitos volumosos e caídos e lindos, nunca mais me saíram da cabeça, nem nunca mais me deixaram embarcar na mercadoria do silicone do dia. Somos quem somos! Com nossas rugas, marcas e circunstâncias. E nosso Poder.

Pois, fossem os seios caídos de Alícia, ou os de Maria, pintados, soltos e dançantes, me trouxeram à tona essa força guerreira das mulheres, que a nossa sociedade de consumo urge em destruir, nos empurrando de goela abaixo padrões magros, empinados, fabricados e falsos e mortos!

“A arte é importante porque ela celebra as estações da alma, ou algum acontecimento trágico ou especial na trajetória da alma. A arte não é só para o indivíduo; não é só um marco da compreensão do próprio indivíduo. Ela é também um mapa para aqueles que virão depois de nós…O ofício de perguntar, o ofício de contar histórias, o ofício de ocupar as mãos – todos esses representam a criação de algo, e esse algo é a alma. Sempre que alimentamos a alma, ela garante a expansão.”

A imagem de Maria no carnaval me alimentou a alma e me fez celebrar minhas perguntas, minhas histórias e minha expansão, e com ela, eu homenageio às mulheres no dia 8 de março. A imagem da “ mulher que mora no final do tempo ou de “mulher que mora no fim do mundo”…ela é amiga e mãe de todas as que se perderam, de todas as que precisam aprender, de todas as que tem um enigma par resolver, de todas as que estão lá fora na floresta ou no deserto, vagando e procurando” . E de onde bradamos – Nenhuma à menos!

Obs: Todas as citações são de Mulheres que Correm com os Lobos, de Clarissa Pinkola Estés

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa 8 de março de 2017
 


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