Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

Dias de Abandono


30/01/2017

Foto: autor desconhecido.

Para Monica Rique, quem me apresentou Elena


O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumí¬nio e espelhos monótonos;… (O amor acaba, Paulo Mendes Campos)

Escrever de verdade é falar do fundo do ventre materno. Virar a página, Olga, começar de novo.(Dias de Abandono, Elena Ferrante)

Esse é o título de um dos sucessos editoriais da escritora Italiana Elena Ferrante, pseudônimo de uma festejada autora que nunca mostrou o rosto, nem sequer deu pistas da sua identidade. Ao contrário do movimento das mulheres e a literatura e a luta pela autoria, Elena não quer saber disso. Ao contrário, mergulha num mistério do anonimato e assim segue com sua A amiga genial e História do novo sobrenome, História da menina perdida e outros sucessos.
Comprei esse exemplar pelo título e assunto. “Depois de quinze anos de casamento, Olga é abandonada por Mario. Presa ao cotidiano estilhaçado com dois filhos, um cachorro e nenhum emprego, ela se recusa a assumir o papel da poverella (a pobre mulher abandonada). Essa opção a projeta num turbilhão de obsessões, angústias e ímpetos violentos, capazes de afastar Olga do fato de que as derrotas precisam ser assumidas para que a vida possa enfim seguir adiante “ Com essa orelha, foi difícil resistir.

Sou de uma geração que rompeu o conservadorismo do casamento institucional e primeiro se separou. Não que antes os casais não se separassem, mas era um perdido. Separar era tabu e muitos pais diziam: “Filha minha não separa. Filha minha fica viúva!”. Gracias a La vida o meu pai não era assim. Pelo contrário, acolhimento era o seu tom. Racionalismo! E em primeiro lugar, a felicidade das filhas. Na minha casa, quase todas se separaram.

Separei-me do meu primeiro marido, quando tinha 25 anos. Muito jovem para tudo. Mais ainda para uma ruptura tão gigante. A geração antes da minha, na maioria, ficou nos casamentos, fossem eles bons ou ruins. Felizes ou infelizes, se é que podemos defini-los assim. A minha chutou o pau da barraca. Eram os anos setenta, e a explosão dos costumes, principalmente os sexuais, davam o tom. Queríamos tudo. Estar casada e experimentar outras coisas, inclusive amores. Casamento aberto. Amizade Colorida. Tinha que dar em merda. E falo de sofrimento. Perdição. Perdas e Danos, como depois constatei nesse belo e apavorante filme de Louis Malle. No filme entendi quase tudo. Fazemos e somos responsáveis por nossas escolhas. Mesmo que inconfessáveis!

A geração de hoje se separa porque querem contos de fadas; a saber desde a festa de casamento. A minha queria igualdade, parceria, amor incondicional, e muita muita simbiose amorosa. A vida é muito mais complexa que isso. Amor e sexo , então!!! Daí nos separamos para cair na gandaia, no poço sem fundo, no agito, na busca frenética, no sexo livre, enfim, para atolar os dois pés nas jacas todas, sem olhar para trás. Nos demos mal? No casamento não . Fomos felizes enquanto durou. O Depois? Acho que vivemos coisas delirantes e irreversíveis. E isso bastou. Ou não. Uns se perderam. Outros se acharam. Não necessariamente nessa equação. Um enigma, talvez. A decifrar.

Ao ler Elena e seu abandono, muito me identifiquei. Principalmente com sua linguagem crua, e seus ímpetos violentes. Os vivi todos. E como Olga, a protagonista do Abandono, também senti que “a banalidade da vida tem um tom extraordinário, misterioso.” Também confessei minhas fragilidades, meus ciúmes exacerbados, meus medos, minha inveja insuportável, e minhas vergonhas alucinantes. Também vivi dias trancafiada em casa. Bebi todas as cachaças. Pensei todas as loucuras. Vi várias auroras, luzes sorumbáticas. Perdi-me várias vezes. Muitos pesadelos, obsessões, saudades doidas e doídas!

Assim como Olga, também senti-me em armadilhas tantas e nenhuma reparação. Meus desejos? Em falta!: “Que decisão injusta, unilateral. Soprar ao vento o passado como um inseto feio, pousado na palma da mão. O meu passado, não somente o seu, tinha chegado a este desmanche. ….Desse jeito, na confusão da vida ao deus-dará, eu estava definhando, murchando, estava seca como uma concha vazia numa praia no verão. E naquelas longas horas fui a sentinela da dor, velei junto à multidão de palavras mortas.”

Olga, sozinha e com os filhos que a culpam, a xingam, adoecem, ficam em casa no verão, sem férias e com toda a raiva dela e da vida a fazem entrar num êxtase de definhamento. Leva o pastor alemão , Otto, para passear no parque, dedetiza a casa, cachorro adoece, vomita, tem espasmos, morre, assim como ela que, sozinha e silenciosamente também tem os seus refluxos de sangue, repulsa, des-orientação e abandono. Vi-me em Olga. Acho que muitas de nós fomos Olga algum dia. Na revolução sexual dos anos 70 também jogamos a toalha, perdemos, achamos, vivenciamos, ouvimos Hurricane de Dylan, em êxtases, e, sentamos no meio fio das calçadas mornas das madrugadas da praia, e choramos.

Quando uma vez avistei o meu Mario na calçadinha, assim como Olga, presenciei que: “No seu corpo, no seu rosto, não havia vestígio da nossa ausência. Enquanto eu carregava em mim – só de leve me tocou o seu olhar e tive certeza – todos os sinais do sofrimento, ele não conseguia esconder os do bem-estar, talvez de felicidade.” Insuportável certas imagens!

Como Olga tinha 38 anos, seu marido fala que tinha medo das horas e que dormir com ela na mesma cama sentia como um relógio – “um medidor de vida que vai embora deixando um rastro de angústia”. Olga pergunta então raivosa: “então quer dizer que dormindo comigo você se sentia envelhecer? A morte, você, a meia na minha bunda, como era gostosa antes e como tinha ficado agora?…” De bundas e vozes, uma performance que Olga se pergunta: “Quantas mulheres não conseguem abrir mão da encenação da voz infantil. Eu tinha desistido imediatamente, com dez anos eu já procurava um tom adulto. Nem nos momentos de amor eu fazia o papel da menininha. Uma mulher é uma mulher.”

Olga começa então a ouvir as estórias que a mãe contava – A da Mulher Abandonada, sem amor que morriam vivendo. Olga foge desse estereótipo e procura vida no desamparo e mesmo no desengano. Avista um vizinho estranho, o Sr. Carrano,e com ele se entrega numa ação ácida e de mau hálito e gosto. Onde só sua língua caspenta tem peso. Uma saída, um beco escuro que na solidão extrema, quem já não se aventurou?

Olga diz que não sabe gritar – “as palavras caem por perto de mim como pedrinhas jogadas pela mão de uma criança”. Já eu, gritei muito com Pink Floyd. Tanto tanto e tão entregue à outras dimensões da consciência perdida que, um dia acordei nas areias do Cabo Branco. Em um outro, me vi nua num chuveiro em Baía Formosa, tomando pinga 31 com D. Regina, D. Vandete, peixe frito peixe frito. Todos estavam inebriados a cantar alguma música brega. E o meu coração bobo e o bombo de Alceu, uma vez aqui e outra acolá me devolviam o prumo. Forte, tentei ser. Mas uma vez, assim como Olga, também vi flying sources in the Sky. Jogava-me nas almofadas da sala até adormecer sem saber muito onde estava o real e a ficção. “ah! A virtude de uma bunda dura” bradava Olga. Também devo de ter tido esses brados nada retumbantes!

Em toda e qualquer separação, há o sentimento de raiva e frustração pelo tempo perdido, tentando construir algo que aparentemente se dissolve no ar. Mas nada se perde! Somos o que vivemos , o que perdemos, inclusive o que não vivemos, segundo Maria Rita Kehl e sua “teoria do esquecimento”. No abandono, contemplamos de camarote tudo aquilo que era a nossa vida ir se realizar no quintal de outro. Olga pensa sobre isso: “Eu tinha tirado um tempo que era meu para somá-lo ao seu e fazê-lo então mais potente. Eu tinha posto de lado as minhas aspirações para acompanhar as suas. Para cada crise de desconforto dele, eu tinha estancado as minhas crises para poder confortá-lo. Eu tinha me perdido nos seus minutos, nas suas horas, para que ele se concentrasse. Eu tinha cuidado da casa, da comida, dos filhos, eu tinha me ocupado de todas as chatices da sobrevivência do cotidiano, enquanto ele escalava teimosamente o declive da nossa origem sem privilégios. E agora, agora ele me largava carregando consigo todo aquele tempo toda aquela energia, todos aqueles sacrifícios ….de uma hora para outra, para gozar os frutos com outra, uma estranha que não tinha mexido um dedo para pari-lo, nutri-lo e fazer com que ele se tornasse o que era. Parecia-me uma ação tão injusta,….” Essa fala enlutada e rancorosa de Olga é sim pequena, mas legítima quando pensamos nas milhares de mulheres que silenciaram seus mais profundos desejos em nome do casamento e da família, e quando são largadas, perdem o bonde, a capacitação, o mercado de trabalho e o pior, perdem a si mesmas.

Sentimentos de perda de identidade, des-amparo, de solidão profunda, nos rodeiam. Assim também como Olga, um dia me perguntei: “Que fim tinha levado a mulher que eu tinha imaginado ser quando era adolescente? Compartilhei com Olga esse ser dissolvido em um nada, tabula rasa! Alguém que teria sido construído a partir de um outro que não eu. “Quem sou Eu?”, vira sim um mantra. E a triste constatação de que não existimos como indivíduo, mas como um casal, essa entidade limitada e asfixiante: ”Que mistura complicada e espumosa é um casal. Embora a relação quebre e se desfaça, ela continua a agir por vias secretas, não morre, não quer morrer.” Essa é a grande e maior arapuca! A entidade não desaparece. Por vezes, nunca! E os amigos que foram do casal, não sabem mais o que fazer com aquela entidade que se rompeu. Perdemos o marido, a casa, a simbiose de dois seres a procura de uma unidade impossível, e perdemos os amigos! E no meio de tantas perdas – Olga conclui: “É ruim o círculo do dia vazio, quando a noite se enrola no pescoço como um nó.”

E quando encontramos um ex- explodindo com a sua acintosa felicidade, só um pensamento-tormenta nos persegue: “Agora que o vejo me parece que aquela intimidade não pertence a ele, seja de outro que o substituiu, talvez a memória de um pesadelo da minha adolescência, talvez a fantasia de olhos abertos de uma mulher desfeita. Onde estou? Em que mundo me abismei, em que mundo reemergi? A qual vida voltei? Com qual objetivo?. ” Fecha a cena! A cortina! O sonho! E a vida tem sim dessas exigências. Corremos atrás dela , pois!

Um palmo à frente é quase um infortúnio pensar. O futuro então! Só o passado nos ofusca. Olga tem tonturas ao pensar sobre isso: “O futuro – pensei – será todo assim, a vida viva junto ao cheiro úmido da terá dos mortos, a atenção com a desatenção, os saltos entusiastas do coração junto às quedas bruscas de significado. Mas não será pior do que o passado.”

Juntar os cacos, re-fazer-se, re-inventar-se, Começar de novo, como tantas vezes cantei com Ivan Lins. Diante dos filhos então, Olga tem urgência: “Queria ser eu, se essa fórmula ainda tivesse algum sentido. Ou pelo menos queria ver o que permanecia em mim, uma vez que o houvesse retirado.”

Todas um dia fomos as mulheres quebradas! E como é difícil ver a vida inteira quando crescemos acreditando no amor romântico que tudo salva, tudo consegue e toda felicidade conquista. Do nada, temos que acreditar que a vida é bela, que a vida segue, que existem outras possibilidades, amorosas inclusive. Aquela amputação terá cura. Outro braço não vai nascer, mas uma outra dinâmica é urgente se mergulhar. Eu, eu e eu! Pensava. Olga, se alegra: “Aquela noite, quando Mario foi embora, voltei a ler as páginas em que Anna Karenina está próxima de morrer, folheei aquelas páginas que falava de mulheres quebradas. Lia e no entanto sentia-me segura, eu não era mais como aquelas senhoras das páginas, não as sentia como uma voragem que me sugava. Me dei conta de que tinha até sepultado em algum lugar a mulher abandonada da minha infância…a pobre coitada voltou a ser como uma foto antiga, passado petrificado, sem sangue.”

Na maldição do amor romântico, nos iludimos; achamos ter sido escolhidas porque alguém morre de amor por nós. Eu não vivo sem você! Escutamos! E nos enchemos de orgulho e vaidade. Qual nada! Olga é crua: “Somos ocasiões. Consumimos e perdemos a vida porque um qualquer, em tempos longínquos, por vontade de descarregar o pau dentro de nós, foi gentil, nos escolheu entre as mulheres” . A realidade é tão crua quanto Olga! Olga sabe disso: “Não, pensei apertando o pano de chão e levantando-me com dificuldade; o futuro , de certo ponto em diante, é somente a necessidade de viver o passado. Refazer imediatamente os tempos verbais”.

No auge do abandono, Olga se vê no completo não existir, que se traduz no não reagir , não estimar por si, e claro que isso também tem uma significação no corpo. Pessoas tristes e des-amparadas não se cuidam. “Quanto mais choro mais passo batom”, fala o poema de Vitória Lima, numa justaposição dessas forças antagônicas. Cuidar de si, é preciso! E Olga questiona: “Quando foi que eu perdi aquela força e teimosia da energia animal, talvez na adolescência. Agora estava num processo de volta ao selvagem, olhei meus tornozelos, minhas axilas, desde quando eu não me depilava, desde quando não me raspava? Eu, que até quatro meses atrás era só ambrosia e néctar…. Levitar. Queria sair do chão, queria que me visse suspensa em equilíbrio, elevada, como acontece com as coisas integralmente boas…Pensava a beleza como um esforço constante de apagamento da corporalidade…. Tornara-me uma esposa obsoleta, um corpo negligenciada, minha doença é só a vida feminina que ficou fora de uso.;;;meu rosto escorregou para fora do espelho.”

Ambrosia e néctar! Precisamos dessas palavras e desses sabores para seguirmos a vida! E quase todas nós mulheres, também um dia, tivemos nossos rostos escorregados para fora do espelho!

Ana Adelaide Peixoto – 05 de novembro 2016
 obs – Texto publicado no Correio das Artes – A União , 29/01/2017


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