Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

De Gays, Lésbicas & Outras Possibilidades – Um corpo e um desejo que não são meus!


31/10/2016

Foto: autor desconhecido.

Quando era pequena e depois adolescente, e mesmo até outro dia, e falo do século passado, ser gay era um mistério. Nós, ouvíamos falar de longe de uma ou outra pessoa assim, diferente. Pelas minhas rodas de amigos tinha uns quatro mais visíveis. Eram pessoas efeminadas, de famílias da sociedade, excêntricas, umas mais, outras menos, e viviam como seres estranhos, mas buscavam suas felicidades entre quatro paredes, mesmo a custa do anonimato, do segredo e com certeza , da exclusão social e do sofrimento. Alguns se casavam para dar satisfação à sociedade, uns três ou quatro eu conhecia. Mas era tudo tão longe de mim, que era como se fosse algo lá no pico de uma montanha que não me dizia respeito. E intrigada eu seguia…

Das mulheres então, o mistério era maior. Não conhecia ninguém nas minhas amizades. A não ser aquelas duas, de quem falavam, mas falavam de todo mundo, e elas casaram, tiveram filhos, e tudo também por entre os véus da invisibilidade. E sofrimento e des-locamento , por certo. Era tudo tão à margem que, nem a língua portuguesa tinha as palavras certas para denominá-las. E eu, nas Lourdinas de classe média bem comportada e conservadora, ouvia falar de um sabão…que, de tão escorregadio, eu não entendi muito bem. Só depois vi a saber. E continuei sem entender porque o ensaboar era tão erótico no sexo entre mulheres. Logo eu que, tanto me ensaboei com amigas, tomando banhos lúdicos e inocentes – mas não tanto – nos encontros umas nas casas das outras. Descobrir-se era preciso! Sapatão só apareceu depois. E continuei incrédula com os sapatos grandes???

Quando me casei, aos 19 anos (1971), passei a lua de mel no Rio de Janeiro, por entre artistas, amigos, ateliês, galerias, tintas e exposições, de pessoas do mundo da pintura. Dentre tantas, conheci o Gasparino da Matta (irmão do famoso antropólogo Roberto da Matta). Desse pessoal, muitos homossexuais assumidos , mas não tanto. Início dos anos 70, até o Rio de Janeiro era preconceituoso com os gays e com os outros.

Mas foi com um livro (que infelizmente não lembro o nome), do Gasparino, que, me fez despertar com os olhos mais atentos, para a questão das mil possibilidades da sexualidade humana. Até então achava que homem era homem. Mulher, mulher e ponto. E aquelas pessoas escondidas que se comportavam com trejeitos, mas que não entendia muito seus desejos e suas posições frente ao sexo e à vida. No seu livro, Gasparino já falava das inúmeras possibilidades: homossexuais, travestis, desejos ocultos, e eram tantas definições que fiquei a ver navios com a minha tão limitada ignorância. Mas já havia ficado intrigada quando conheci uma criança de 3 anos que era gay. Anos mais tarde conheci outra. Meninos que desde sempre falavam com a voz transvestida, desmunhecavam, e depois, foram embora das casas dos pais, para viverem suas sexualidades livres da opressão familiar , em centros maiores. E fiquei muito perplexa ao ver que, ser homossexual não era uma escolha, mas algo maior, imponderável, e da qual não temos o controle. Se é homossexual!

Com os anos, foram aparecendo gays de todos os lugares das minhas amizades. Inclusive as lésbicas. Gente efeminada, masculinizada, femininas, machos, frágeis, fortes, de todos os modelos. Inclusive, ainda no final dos anos 70, mesmo os héteros, começaram a querer também viver a curiosidade do mesmo sexo. Era moda o vale tudo. Qualquer maneira de amor vale à pena, cantávamos no Bar da Xoxota, junto com Os doces bárbaros.

Os estudos feministas, as leituras sobre gênero, Judith Butler, Virginia Woolf, e tantas outras teóricas, a Teoria Queer, o evento Fazendo Gênero (UFSC), me abriram ainda mais os olhos e a cabeça, e confesso que a confusão era grande. E palavras como determinismos biológicos, destino, corpo, gênero, essencialismo, binarismo, etc, não davam mais conta da minha limitação sexual. Também outros meios, como as viagens, os filmes, A pele que habito, Minhas mães e meu pai, ou o mais recentes – A garota dinamarquesa, (que aborda a vida da primeira pessoa a fazer a cirurgia de mudança de sexo, e todo o sofrimento psicológico e físico pelo que passou, nos mostra tudo isso de forma assustadora, e artisticamente bela); os casamentos gays, as lutas LGBBT, amigas que assumiram seus lesbianismos publicamente, a moda (Lea T.), e tantas outras fontes de conhecimento, fiquei de novo perplexa como nós humanos pudemos e fomos tão ignorantes durante tantos séculos seguidos. Falo da maioria, do Falocentrismo, porque as minorias, as variantes e trans- de comportamento, e todas as outras possibilidades de sexualidade, sempre existiram, mas trancafiadas nos mosteiros, nos conventos, nos confinamentos existenciais de todos os mortais.

Mas foi também o artista Laerte e a sua experiência crossdresser, dando uma entrevista há algum tempo, à Marília Gabriela, que me pirou os miolos. Que homem/mulher lúcido e transgressor! E que inteligência a falar das fronteiras que queria cruzar, inclusive as sexuais. Usar saia, brinco, batom, porque não? Se podemos tudo na vida, porque nos confinar a um sexo, que por vezes nos aprisiona ao invés de nos libertar?

Há alguns dias, O governo do Reino Unido anunciou que vai extinguir a condenação que recaía sobre milhares de pessoas por ser homossexual ou bissexual, e concederá "o perdão" póstumo a todos os que já faleceram.Perdão esse porque, manter relações homossexuais era considerado um crime na Inglaterra e no País de Gales até 1967, na Escócia até 1980 e na Irlanda do Norte até 1982.

A medida também foi motivada por um movimento conhecido como "Alan Turing Law", campanha batizada em homenagem ao matemático britânico Alan Turing (1912-1954) que ajudou a decifrar os códigos dos segredos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.Nesta iniciativa atuou, entre outros, o ator britânico Benedict Cumberbatch, que encarnou o matemático no filme "O Jogo da Imitação" (2014).

Ainda na Inglaterra, recentemente uma exposição lança nova luz sobre a vida do escritor Irlandês, Oscar Wilde, durante o tempo em que esteve na prisão da cidade de Reading, justamente por cometer o crime da pederastia. Em forma de celebração ao escritor, a mostra denominada Inside conjuga vários tipos de arte, desde instalações a performances, baseadas nos conceitos de prisão e separação. Prisão essa onde Wilde escreveu suas memórias carcerárias, De Profundis, na verdade uma carta de amor ao Lord Alfred Douglas (seu amante), amor esse pelo qual tinha sido condenado. No filme Wilde, o escritor faz a sua própria defesa, quando fala do “unnamed love”, ou “o amor que não ousa dizer o nome”, e essa digressão irá complicar ainda mais sua condenação, pois o espírito vitoriano interpretará a definição como uma confissão desavergonhada. No entanto, Wilde, de forma brilhante, está se referindo ao amor transcendental por tudo que lhe rodeia. A prisão de Reading que aparece como espaço da arte, da sua estória trágica e irreversível, só mostra a limitação humana em aceitar o diferente, e o terror e a ameaça que as questões do corpo, do sexo e do afeto nos impõem. Uma lástima!

Esta semana, assistindo à nova série da GNT, Liberdade de Gênero, Direção de João Jardim, que aborda o tema dos Transgêneros, ouço relatos impressionantes. Claro que nesse caso, do corpo biológico não corresponder ao corpo subjetivo, a dor é ainda maior e mais complexa, pois exige uma violência sem tamanho em busca dessa equação que, para nós héteros parece fácil. Em um dos episódios, temos a psicanalista e escritora, militante das questões de gênero, Letícia Lanz, casada há 40 anos com Angela, com quem tem três filhos e três netos. Letícia nasceu Geraldo e fez a sua transição de gênero aos 50 anos, após 30 anos de casamento. Ao ouvir essa figura falar da vida, do sexo e do amor, e também a sua companheira, seus filhos, netos meninos, sobre identidade, margem, preconceito, corpo, roupa, ser homem, ser mulher, ser pai, ser mãe, a gente fica a re-significar todas essas searas, e mais uma vez, o amor, é o que nos rege em todas as relações, não importante se nos trans-vestimos com vestidos , batons, ou gravatas. Esse episódio em particular, de tão forte e surpreendente, me fez chorar junto com Geraldo. Digo Letícia!

Estamos ainda num mar de pântano do desconhecimento e das inúmeras combinações identitárias a fazer e inserir no corpo social nosso de cada dia. Mudar um corpo, cirurgias, hormônios, adequações, sintonias, pêlos, clitóris, pênis, implantes, peitos, curvas, barbas, vestidos, decotes, tanta coisa “nova” e transvestida a re-dimensionar! Mas quando olho ao redor, ou quando vejo alunos do mesmo sexo de mãos dadas nas aulas das 7, e o mundo se abrindo e acolhendo as suas milhares de diferenças, mesmo com todo o preconceito ainda latente, começo a expandir também o meu arco de compreensão, de beleza, e de infinitude de que é feito o ser humano.

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa, 30 de outubro, 2016
 


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