Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

A Velhice de Cada Um


21/03/2017

Foto: autor desconhecido.

Minha mãe tem reclamado pelo nome das pessoas que conheceu na vida: “Cadê Lucinha? Trabalhou comigo na Saboaria Paraibana? Tão linda! E me chamava de Biscuit! E Josélio? Chegava ao Banco tão cedo. Elogiava meu sorriso. Minha com-postura! Meu Deus! Por onde anda toda essa gente que conheci e fez parte da minha vida? Sumiu todo mundo?”

Minha mãe tem reclamado que não tem amigas. Queria ter um punhado delas. Para sair para dançar. Perambular. Ir ao teatro. Ao cinema. Tomar café. Jogar conversa fora. “As paraibanas se anulam”, reclama do alto dos seus 89 anos e nascida em Itabuna-BA. Tendo visto as senhoras no além mundo, não se conforma com a reclusão dos velhos. O abandono dos velhos. A solidão dos velhos.

Minha mãe não quer mais saber dos dias. Se dana a dormir de dia, para ficar em alerta à noite. Ouvir o rádio bem alto. “A Rádio de Santa Rita que é boa! Toca música brega. Nelson Gonçalves e Roberto Carlos!” se gaba, e toda uma roedeira em busca de um passado/amores perdidos.

Minha mãe não ouve bem. E nós, aprendemos que, ficar sem esse sentido da audição é tão grave quanto a cegueira. Não se ouvindo, o mundo te percebe não somente surdo, mas também cego. Abstraído da vida. Não participa. Não pertence. Não sabe. Escuto, logo existo!

Minha mãe, quando passeia no carro, vai apontando para as casas das grandes avenidas da cidade e um novelo da memória se desenrola a partir do espaço urbano para o espaço afetivo. “Tá vendo aquela casa ali? Morava Dr. Fulano! E aquela outra? Uma figura conhecida. Tinha carro. Aliás, o único carro da cidade. Quando vinha buscar as filhas, todo mundo olhava. Quanta imponência.” Re-lembra a cada mangueira ou jambeiro clicado.

Minha mãe fala da vida. Da sua vida solitária, mas com os olhos bem abertos e excitados com a Praça João Pessoa, com seu coreto e os olhares dos rapazes. Diz que, bem que namorou! E muito. Não tem do que se queixar. Sonhou! Fez planos! E os seus doces enganos!

Minha mãe, pergunta tanto! É tão in-discreta! Quer saber de tudo o que perdeu, como se nos déssemos contas de tantas perdas. “Maria Dulce? Morreu? Nunca mais a vi. Também, não saio de casa! Dolores? Casou? Mora onde?” , indaga assim aos quatro ventos sem resposta.

Minha mãe faz do passado a sua vida do presente. Os velhos não tem presente. Sim, pode ser triste! A estrada tomada lá atrás é quem faz o percurso diário. Ninguém quer ouvir um velho. Ninguém se interessa por um velho a não ser para lhe objetificar: “tão bonitinha! Tão charmosinha! Tão vaidosinha!”. Minha mãe detesta diminutivos. É como se ela não fizesse mais parte dos substantivos, nem dos verbos nem dos adjetivos que denotam força, vida e poder. Os inhos de uma fragilidade mórbida à toda prova, à toda parte, à toda margem! Insuportável!

Minha mãe faz palavras cruzadas. Muitas. E vibra com as delícias das dificuldades dos sinônimos. Lê os jornais e faz perguntas. Cozinha sua farofa mágica. Não tem mais apetite para grandes almoços, nem acha graça em vinho seco. Gosta dos suaves e doces. E cerveja todo dia no almoço. E seu sono está sempre por outros lugares. Em vigília!

Difícil lidar com o velho! Um problema satisfazer um velho! Ando pensando no tempo. Nas limitações e em o quanto humilde temos que ser para aceitar. Aceitar. E aceitar! A impossibilidade da autonomia. A dificuldade de locomoção. O isolamento. E a perda do seu mundo que, com certeza desmanchou-se no ar. Os amigos ou morreram, ou estão num outro lugar, que nem sempre é aqui. Fico a imaginar a sua cidade como uma cidade fantasma, onde só e somente ela, vaga atordoada pelos cantos. Sem referência alguma. Cadê a missa aos domingos? Cadê minha rua? Minha casa? E as minhas circunstâncias? Os costumes? Distantes como um mar de léguas. Hoje com o mundo digital então, whatsapp e facebook, minha mãe não tem como se conectar. Não posta, não curte e nem compartilha. Detesta celular e TV fechada. Se perde nos botões e tudo parece vir do mundo da lua. Se consome em veias abertas de uma mão única sem volta. Esperar a morte? Ninguém sabe dessa espera. Outro dia, um médico querido disse-lhe que era “um fenômeno”. Guardou isso como que um mantra. E repetia e repetia alegremente. Mas depois, esse mesmo médico lhe disse que estava “na finitude”. Ficou horrorizada, afinal, isso não é coisa que se diga! Finitos somos todos, mas aos quase 90 queremos virar dinossauros. Outro mantra! O veneno da velhice, e pragueja!

Confesso que não tenho gostado muito do que vejo. E ando me ensimesmando a respeito. Afinal? Qual seria o segredo da velhice compadecida, humilde, leve, e abnegada e sem vitimização e azedumes? Com a nossa população vivendo tanto, pouco se conhece dessa nada boa idade, e menos ainda, se tem de políticas e prazeres públicos para os velhos.

E de fenômenos em fenômenos, e de finitudes em finitudes, vamos todas nós, num aprendizado diário com esse tempo chamado de Velhice. Afinal estamos todos já ou quase lá!

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa, 18 de abril,2017
 


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