Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

A Single Man – E um luto todo seu


23/03/2010

Foto: autor desconhecido.

Para Bebé, irmã querida, com quem dividi a emoção da beleza desse filme, os meus Parabéns pelo seu dia

“Tom Ford é um homem de fetiches. Pelos cheiros e outros sentidos, pelo sexo, pelas memórias e pela elegância da vida.” (pesquisa internet)

“Dilacerado pela recente morte de seu amante de longa data em um trágico acidente, George Falconer (Colin Firth) mantém as aparências, ainda visto por outros como um homem no controle. Mas em um dia crucial em 1962, no ensolarado sul da Califórnia onde ele criou raízes, este professor universitário urbano se vê no limite da sua vida. Ele vai descobrir os ecos do passado no presente e vislumbrar versões alternativas do futuro – incluindo a forte possibilidade de nenhum futuro para si mesmo” (Fonte Internet).

Esta é a sinopse do filme infelizmente só em cartaz por uma semana em João Pessoa, sim porque a segunda semana só teve uma sessão, às 21.40, que vamos combinar não é assim um horário tão convidativo. Dizem as más línguas que foi exigência das famílias bem comportadas da cidade. Custo a crer. Acho que tem mais a ver com bilheteria mesmo. E, em tempos de Blockbursters Avatares, quem quer ser um milionário e ver filmes lentos, silenciosos e introspectivos?

A Single Man, tem direção do estilista famoso Tom Ford, que até 2004, trabalhou para a Gucci revitalizando a imagem da grife italiana perante o mercado do vestuário de luxo como um poço de sensualidade. Tom Ford talvez faça parte de uma geração de cineastas que trocaram o plano-sequência pela câmera tremida, construindo suas imagens fílmicas a partir do mundo publicitário das roupas e dos perfumes.

A Single Man, é baseado em um romance semi-autobiográfico do britânico Christopher Isherwood, que causou polêmica ao ser lançado, em 1964. A sinopse percorre um dia de um professor universitário, homossexual, que passa todo o tempo digerindo a morte do companheiro, com quem viveu por 16 anos. Em entrevistas, a atriz Julianne Moore, que faz a amiga Charley, disse: “Tom Ford tem dito que o filme não é uma história de amor gay’ e eu concordei ‘sim, porque ele tem dito que é uma história de amor universal’. O momento em que você passa a minimizar algo rotulando como ‘isso é gay,’ ou ‘isso é hetero’, se torna nicho. Você cria guetos dizendo que algo pertence a um único lugar.” Muito pertinente os comentários de Moore, pois diria ainda que o filme é muito mais que uma estória de amor; mas a estória da perda desse amor – O luto.

O longa é praticamente um monólogo de Colin Firth, que vem colecionando merecidos prêmios pela sua atuação. Firth convive com coadjuvantes de luxo: Julianne Moore e a revelação adolescente Nicholas Hoult ( custei a crer que era o menininho de Um Grande Garoto, agora um homem/modelo/ator belíssimo e talentoso), que se envolve com o professor enlutado. Firth, com sua bagagem Shakespeareana e trânsito pelas adaptações de Jane Austen e o hilário Bridget Jones, foi perfeito na escolha para esse papel contido, angustiado e preso em características de um estrangeiro no país geográfico e afetivo dos questionamentos do personagem. O enredo discute temas difíceis, como a aceitação dos relacionamentos homossexuais pelas famílias e pela sociedade americana dos anos 1960.

A direção de arte, constata o apuro estético de Tom Ford, acostumado com tecidos e óculos, é o que conduz a trama e as emoções do público. Condução essa sempre com a câmera plongée, foco de cima para baixo, criando assim um efeito ainda mais latente do que está sendo visto/filmado. Aliás,um exemplo óbvio dessa estética são as roupas, coordenadas pelo diretor com a superfigurinista Arianne Phillips . Os óculos do protagonista, por exemplo, foram escolhidos a dedo para marcar a sua fragilidade; um recurso por onde se esconder dos olhos nos olhos talvez. Por vezes fiquei a me lembrar de Yves Saint-Laurent e também dos seus óculos igualmente pesados e ícones da sua personalidade. E quando Firth os tira, é quando tudo desaba. Seus sapatos e gravatas (atenção ao detalhe do nó windsor) também são peças-chave, assim como o suéter bege-felpudo de Hoult. Todos os detalhes para um ensaio de um suicídio, ao som de uma ópera. Como não fazer uma referência à uma outra morte, num outro filme, Philadelphia, onde Tom Hanks dançava o ballet do desespero da AIDS, ao som de Wagner?

Mas a viagem estética do homem solitário não fica só nas roupas. Há a iluminação, os jogos de câmera e os efeitos nas lentes. Também os closes sensoriais nos poros da pele dos personagens e em cada detalhe dos coadjuvantes. Enquadramentos pulsantes, literalmente.

Essa viagem estética já se estabelece desde a abertura do filme, em cor sépia, estabelecendo assim as fronteiras entre sonho/realidade do personagem, nu e desorientado nas águas, com closes em suas partes fragmentadas, de um corpo que já não se constitui como uno, mas como partes que se perdem e flutuam à deriva. Um verdadeiro ballet que será retomado no final do filme.

O tempo é 1962, e após a imagem do acidente de carro, da neve ensangüentada e do beijo de despedida, George Falconer tem dificuldades de acordar. Acordar é doer! É despertar do sonho. É enfrentar o dia: “Só os tolos tem sorriso para acordar”. O simplesmente agora. Lembrei de Sociedade dos Poetas Mortos e de Walt Whitman: Carpe Diem / Seise the Day! Se tornar George? Só depois da última engraxada no sapato para ter forças a desempenhar um papel para o público. Olhar no espelho e respirar, a única receita para poder terminar o dia (des)afogado .

Dr .George Falconer é professor de Literatura. Mora numa casa lindíssima. Decorada por arquiteto (seu companheiro Jim , Mathew Goode, tinha essa profissão), com ambientação moderna e minimalista. Mas o pão no freezer está duro demais e ele declara que: somos invisíveis! Diante da dor da perda, resolve que naquela manhã, tudo será diferente. Olha em câmera lenta e foca nas partes do mundo e das pessoas: a boca, os olhos, o aceno da vizinha, tudo se organiza para o seu olhar derradeiro daquele vasto mundo .

A filósofa Márcia Tiburi, no seu texto “Aprender a pensar é descobrir o olhar” discute as diferenças entre Ver e Olhar: “O olhar diz-nos que não temos o objeto e, todavia, nos dispõe no esforço de reconstituí-lo. O olhar nos faz perder o objeto que visto parecia capturado. Para que reconstituí-lo? Para realmente capturá-lo; Mas essa captura que se dá no olhar é dialética: perder e reencontrar são os momentos tensos no jogo da visão. Há, entretanto, ainda outro motivo para buscar reconstruir o objeto do olhar: para não perder além do objeto, eu mesmo, que nasço, como sujeito, do objeto que contemplo – construo enquanto contemplo. Olhar é também uma questão de sobrevivência. …Podemos dizer que o sujeito que olha existe…Olho logo existo.” E adianta ainda que, o saber que advém do olhar é sempre uma informação sobre a morte e que o olhar é a ruminação do ver e que sua experiência alongada no tempo e no espaço nos instaura em outra consistência de ser. E é isso que George busca nas suas captações e desarvorar de perspectivas. George rumina o tempo no espaço pulverizado dos closes da beleza. E tenta desesperadamente reconstituir o objeto perdido do seu existir como sujeito. E assim, se aproxima da morte. Da morte de Jim, e quem sabe da sua própria.

Nessa busca incessante pelo objeto, e por ocasião em que sabe da notícia da morte do seu amor/ companheiro, temos chuva, choro, contenção, e o telefone. George olha através da janela; e contempla literalmente a vida da vizinha; a vida cotidiana dos padrões da classe média americana daquele começo do que viria a ser o revolucionário anos 60: o jardim, crianças brincando, discussão do casal, o marido que sai para o trabalho, a dona de casa que fica….Logo em seguida está na sala de aula a falar de Aldous Huxley e “After Many a Summer”. Tenta inutilmente dar uma aula diferente. Escolhe o tema do Medo. O medo e os seus reais motivo. Há sempre um! Menciona os judeus, os negros e as minorias invisíveis. O medo da dança de Elvis Presley, de ficar velho e inútil. George também tem seus próprios medos, e, enquanto seu colega fala de Cuba e dos mísseis, ele se fixa nos músculos de um jogador de tênis. Está com o olhar fixado nos detalhes, e o seu olho como uma câmera, só está clicado no zoom da beleza estética, acompanhado sempre de sons mais fortes, como o som do tic tac do relógio. Os sons diegéticos tomando forças e volumes inesperados, como que quisesse nos arrematar também para aquela dor que tomba diante do mais ensurdecedor dos sons: o silêncio.

Charley, sua vizinha e amiga de Londres, interpretada magistralmente por Julianne Moore, solitária e sozinha lhe convida para jantar. Está no espelho com sua imagem distorcida onde somente um olho maquiado a faz sensual e pronta para conquistar George novamente. Olho esse que distorcido na imagem triangular, pressente algo sinistro, mas também se encanta com os apelos visuais a quais eles se destinam: seduzir George, agora que está aparentemente disponível.

Mas George lembra da cena do retrato. Para mim pessoalmente, a cena mais linda e arrebatadora. Os dois amantes num penhasco, tudo cinza, onde a conversa gira entre o ciúme e ir para cama com mulheres. Jim nunca foi. George já. Com Charley há anos. Coisa de jovem. E o vento soprava com aqueles dois personagens soltos ao som do vento. Dois corpos masculinos em diálogo na solidão deles mesmos. Excluídos do mainstream da heterosexualidade; duas belezas roubadas no deserto inóspito das pedras íngremes do abismo.

Outra cena esteticamente bela, quando George vai ao Banco retirar seus pertences dos cofres. Ao sair, enquanto procurava documentos, e seu olhar se fixa no chão em sapatos azuis piscina.

E lá estava ela, a menina da vizinha, com o seu ar de Alice no País das Maravilhas, extremamente bela, extremamente azul, com olhos inquisidores, e sobrancelhas espessas, a falar dos seus cachorros: Charlton Heston e Ben Hur. George está triste pois seus cachorros também morreram no acidente. Enquanto sai do banco, vê um outro Fox Terrier chamado Índia, e com esse nome de alhures, ele viaja através da memória olfativa, em busca dos seus cheiros conhecidos, inclusive do maior amigo do homem.

E nesse último passeio de luto, George encontra Carlos numa loja onde foi comprar o Gin inebriante de Charley. No estacionamento, um outdoor gigante da famosa cena de horror de um outro filme- Psicose – Hitchcock. Aliás são muitas às referências ao cinema no filme de Ford. Carlos tem o cabelo cortado caseiramente a La James Dean. E pergunta: Aren´t you going somewhere? George não quer companhia, embora aprecie um cigarro, uma conversa, um estória. Mesmo de forma mais contida e minimalista, está em estado de pânico silencioso.

E quando os vizinhos dão uma festa, ele olha novamente pela janela. Lembra da vida calma e entrosada com Jim, onde a maior rusga entre os dois era quem trocaria o LP na vitrola. Uma comunhão de pessoas que se amam, na quietude da leitura em um sofá. Ele lia Kafka, Metamorfose, enquanto Jim, Bonequinha de luxo. Com tanta sintonia, como era que a sociedade ainda questionava sobre ter uma vida; sobre viver um relacionamento verdadeiro? Charley questiona isso no jantar, já com algumas doses de um bom Gim e com seu ar coquete, seu coque e seu modelo de vestido de cores geométricas como se fossem de uma pintura de Mondrian? E George responde em explosão: “Se você não é feliz sendo uma mulher, pare de ser uma!” E os dois amigos bebem, beijam-se carinhosamente, dançam e conversam sobre a conexão com o outro, sobre ser um romântico de verdade, e sobre ter experiência. Ter experiência é o que o homem faz com ela! Vocifera George. E conversam também sobre going home, no caso voltar para Londres. George já não pode voltar no tempo. A morte é o futuro! Charley? Poderia? Não! seria um fracasso. Viver o passado já é o seu futuro. A trilha de tudo isso? Blue Moon. Uma trilha cuidadosamente arranjada por Abel Korzeniowski. Uma trilha capaz de captar a dor do amor e o encontro dele próprio.

O mar! O calor. O som dos violinos e das gaivotas. Ondas que quebram. Escuridão e acordes. A lua, e George e seu aluno sedutor mergulham. Brincam feito crianças . E George novamente fica sem ar. Seu relógio para. Como não recitar baixinho W. Auden e seu Funeral Blues: Stop All the clocks, poema de despedida de um outro filme – Quatro Casamentos e Um Funeral, mas que fala muito mais da vida do que da morte.

Novamente o sonho, a água que embala de Bachelard: “A água que duplica o mundo e as coisas e que duplica também o sonhador, não simplesmente como uma vã imagem, mas envolvendo-o numa nova experiência onírica.” E o ballet! Os movimentos que poderiam remeter à Pina Baush. As bolhinhas da respiração de George aparecem feito bolhinhas de champanhe. Algo está sendo celebrado. Mas eis que aparece tenebrosamente uma coruja que voa. Um prenuncio. Coruja, símbolo da morte, a noite, o frio e a passividade(Cirlot).E George nesse momento, numa catarse/ epifania, tem o seu instante de insight; insight de que a vida é bela e de que o luto pode terminar. Fala de uma clareza única, do silêncio, do sentir ao invés de pensar, de um mundo revigorante. Uma cena muito alusiva à cena final do conto de James Joyce The Dead, adaptado por John Huston como Os Vivos e Os Mortos, onde o personagem Gabriel, olha o mundo também lá fora, nevando, e faz sua viagem de transformação/percepção de mudanças fora e dentro de si.

O final do filme não precisa de ensaio. Ela simplesmente vem. Simples assim. E tudo se repete. O beijo de despedida, o corpo caído e inerte, o tic tac do relógio novamente, o sonho, e a água com um corpo dançante. A dança da vida. E da morte.
The End.


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