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Boate funcionou quase 1 ano e meio sem alvará de incêndios, diz relatório


01/02/2013



 A boate Kiss, em Santa Maria (RS), local da tragédia que matou 236 pessoas no domingo (27), ficou sem alvará válido de prevenção contra incêndios durante quase um ano e meio ao longo de seus 3 anos e 5 meses de funcionamento, de acordo com relatório entregue pelos bombeiros à polícia.

A Polícia Civil investiga se a casa noturna poderia estar em funcionamento no dia da tragédia, depois que a informação de que a boate estava com o alvará vencido desde agosto de 2012 foi divulgada na manhã seguinte ao incêndio. "Está vencido desde agosto. O alvará é necessário para o funcionamento da casa na sua normalidade", disse no dia o tenente-coronel Moisés da Silva Fuchs, comandante do Corpo de Bombeiros da Região Central do Rio Grande do Sul.

Depois disso, bombeiros, prefeitura, promotores, especialistas e o advogado do proprietário da boate se posicionaram sobre o assunto (veja abaixo o que cada um disse sobre o alvará da boate).

Histórico da tramitação
O primeiro alvará foi expedido em 28 de agosto de 2009, com validade de um ano. Após o vencimento, a nova licença só foi dada no dia 11 de agosto de 2011, tendo vencido em agosto do ano seguinte, mais de cinco meses antes da tragédia.

Os períodos em que a autorização não esteve em vigor foram marcados por trâmites burocráticos envolvendo o Corpo de Bombeiros e a casa noturna (veja ao lado datas, pedidos, inspeções e autorizações envolvendo o alvará de prevenção contra incêndios).

O incêndio na casa noturna teve início durante o show da banda Gurizada Fandangueira, que fez uso de artefatos pirotécnicos no palco. Segundo relatos de sobreviventes e testemunhas, e das informações divulgadas até o momento por investigadores:

– O vocalista segurou um artefato pirotécnico.
– Era comum a utilização de fogos pelo grupo.
– A banda comprou um sinalizador proibido.
– O extintor de incêndio não funcionou.
– Havia mais público do que a capacidade.
– A boate tinha apenas um acesso, para a rua.
– O alvará dado pelos Bombeiros estava vencido.
– Mais de 180 corpos foram retirados dos banheiros.
– 90% das vítimas tiveram asfixia mecânica.
– Equipamentos de gravação estavam no conserto.

O que disseram os bombeiros

Em nota divulgada nesta sexta-feira (1) no site da Brigada Militar, o comandante-geral Sérgio Roberto de Abreu disse que o proprietário da boate Kiss pediu inspeção dos bombeiros para renovação do alvará e que o processo estava em tramitação. Ele afirmou que, de acordo com o alvará anterior, "os sistemas de prevenção de incêndio previstos na lei estavam instalados e operantes".

Durante o período de tramitação da renovação do alvará, segundo Abreu, "não há previsão legal para interdição imediata determinada pelo Corpo de Bombeiros, cuja competência é limitada às questões relacionadas ao sistema de prevenção de incêndio".

Na terça-feira (29), o major Gerson Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional do Corpo de Bombeiros, afirmou em entrevista coletiva que a casa noturna tinha todas as exigências estabelecidas pela lei vigente no Brasil. "Quem falhou, que assuma a sua responsabilidade. Nós fizemos tudo o que estava ao nosso alcance e não vou entrar em jogo de empurra-empurra", disse Pereira.

"Eles tinham tudo. O extintor pode ter falhado, por isso sempre pedimos atenção à data de validade. Gostaria de ter efetivo para que a fiscalização fosse realizada semanalmente, mas é inviável. Se os proprietários efetuaram mudanças no local após a última vistoria, não temos como controlar", completou.

Ao Jornal Nacional, o coronel Guido Melo, comandante do Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul, reconheceu que o pedido de vistoria foi feito por parte da boate. "Quando dá entrada no protocolo, automaticamente entra na fila aguardando a inspeção", afirmou.

O que disse a prefeitura

Na terça, a Prefeitura de Santa Maria se eximiu de responsabilidade pelo incêndio na boate e disse que que a sua responsabilidade era apenas sobre o alvará de localização, que é válido com a vistoria do ano corrente. "A prefeitura não é responsável. A prefeitura está com tudo na lei", disse na ocasião o secretário de Relações de Governo e Comunicação, Giovani Mânica.

A prefeitura também entregou cópia da lei estadual 10.987. Em seu parágrafo primeiro, a lei afirma que o Corpo de Bombeiros deverá realizar inspeção anual nos prédios considerados de risco grande e médio e a cada dois anos nos prédios realizados de risco pequeno.

A lei ainda diz que aquele que não apresentar plano de prevenção e proteção contra incêndio, que no caso a boate Kiss estava vencido, poderá sofrer sanções do Corpo de Bombeiros, como multas, advertência e interdição."Não sou eu quem responsabiliza (o Corpo de Bombeiros). É a lei", afirmou o secretário.

A procuradora-geral de Santa Maria, Anny Desconzi, disse ao G1 na quinta-feira (31) que um decreto municipal regulamenta as situações em que a prefeitura pode cassar o alvará de funcionamento do estabelecimento e que o caso da boate Kiss não se enquadra em nenhum deles.

"O decreto 032 de Santa Maria, publicado em 2006, diz no artigo 17 que a prefeitura só pode cassar o alvará nas seguintes situações: 1) informação restritiva do Corpo de Bombeiros sobre a situação do plano contra incêndio; 2) informação restritiva da Secretaria Municipal de Saúde sobre a situação sanitária; 3) informação restritiva da Secretaria Municipal de Meio Ambiente sobre poluição sonora; 4) fiscalização que encontre irregularidades ou 5) impedimento do livre acesso das autoridades públicas ao local", explicou Anny.

Para ela, como o Corpo de Bombeiros e nenhum outro órgão enviou informação sobre a situacao da boate, a prefeitura não tinha como agir. "A prefeitura só pode tirar o alvará em uma destas hipóteses. Esta previsto na legislação municipal. A prefeitura fez a sua parte realizando fiscalizações periódicas. A cada ano vistoriamos todas as casas noturnas. Em 2012 foi em abril. Este ano, faremos em abril de novo. As mudanças na Kiss foram neste período que não entramos lá".

O que disse a defesa do dono da boate

Em entrevista na quarta-feira (30), Jader Marques, advogado de Elissandro Spohr, um dos sócios da boate, disse que o alvará de prevenção contra incêndio só estava vencido porque o proprietário aguardava vistoria dos bombeiros e que a casa tinha "plenas condições" de estar aberta.

O advogado afirmou que Elissandro Spohr fez sua parte ao procurar o Corpo de Bombeiros e pagar a taxa de renovação do alvará e que o problema está na "incapacidade" dos bombeiros de fiscalizarem os prédios da cidade. Ele disse que a fila de espera para vistoria em Santa Maria chegaria a quase 2 mil pedidos.

"O Corpo de Bombeiros é incapaz de atender a demanda que uma cidade como Santa Maria exige. O Elissandro fez a sua parte, pagou a guia de solicitação da inspeção no banco, e estava esperando. O contribuinte, o cidadão, tem, além de pagar, ficar esperando os órgãos públicos realizarem o seu papel. Era obrigação dos bombeiros irem até lá", afirmou.

O que disse o Ministério Público
Para o promotor Cesar Carlan, que investiga suposta falha dos órgãos públicos na renovação do da licença, "era óbvio que um prédio sem alvará não poderia estar funcionando". "Não há na legislação nenhum trecho que diz que é responsabilidade específica da Prefeitura ou dos Bombeiros cobrar a renovação, mas todos eles tem que estar cientes de que algo irregular não pode continuar aberto. O proprietário tem a responsabilidade e tem que ter a iniciativa disso [pedir a renovação]", afirmou ele.

"O Ministério Público sempre agia com base em denúncias ou reclamações do povo, da imprensa, de forma reativa. Mas não podemos ficar responsáveis por fiscalizar se o que está aberto e funcionando é legal", completou.

O Ministério Público do Rio Grande do Sul abriu um inquérito civil na terça para investigar a possibilidade de improbidade administrativa por parte de integrantes da Prefeitura de Santa Maria, do Corpo de Bombeiros e de outros órgãos públicos por terem permitido que a boate Kiss continuasse funcionando mesmo com as licenças de operação e sanitária vencidas.

O que disse a Secretaria de Segurança

A assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul disse que o Corpo de Bombeiros fez a sua parte ao emitir a notificação de vencimento alvará de prevenção contra incêndios, mas que era obrigação do proprietário buscar pela renovação, "assim como é obrigação do motorista solicitar a renovação da carteira de habilitação".

Segundo o órgão, "foi o emaranhado de leis" que dificultou e atrasou o processo e que a espuma tóxica, que segundo a polícia, preliminarmente, causou a morte acelerada do público, foi colocada entre uma inspeção dos bombeiros e a seguinte, que ainda seria realizada.

A assessoria disse desconhecer a demora na renovação do primeiro alvará de funcionamento em 2011 e afirmou que o Ministério Público acompanhava o caso, em outro inquérito, e também já tinha solicitado avaliação dos bombeiros sobre a questão do ruído formado pela casa e que por isso mantinha também contato com o Corpo de Bombeiros.

A opinião de especialista

Segundo o advogado Franco Mauro Brugioni, especialista em Direito Civil, a prefeitura tem o dever de fiscalizar os estabelecimentos comerciais no município. Se a casa não possuir laudo do Corpo de Bombeiros, deve ser fechada. "A prefeitura não pode deixar funcionar. O bombeiro não fiscaliza, quem dá a licença e quem fiscaliza é a prefeitura", afirmou.

Segundo ele, os bombeiros não têm poder ativo de fiscalização, cabendo aos proprietários requererem a vistoria. "Bombeiro é chamado para emergência e para laudo técnico. Não é um órgão fiscalizador".

Tramitação lenta

Conforme o relatório entregue à polícia, os bombeiros notificaram a boate de que o priimeiro alvará de prevenção contra incêndios não tinha mais validade em dezembro de 2010, quatro meses depois do vencimento. Os advogados da casa noturna pediram a nova vistoria dois meses depois, em fevereiro de 2011. Em abril de 2011, os bombeiros foram ao local e expediram uma notificação de correção, que demorou mais um mês para chegar nas mãos do proprietário da boate.

Em julho de 2011, quase um ano após o vencimento do primeiro alvará, o Ministério Público solicitou aos Bombeiros uma inspeção na boate. A visita ocorreu em 25 de julho e, no dia seguinte, a promotoria foi informada que algumas irregularidades ainda persistiam e que era impossível expedir, naquela data, o alvará de prevenção contra incêndios.

Quase dois meses depois, em 6 setembro de 2011, o promotor Ricardo Lezza, que acompanhava um inquérito sobre a poluição sonora provocada pela Kiss, voltou a pressionar os bombeiros sobre o andamento da renovação do alvará de prevenção, em ofício enviado ao comandante do 4º Comando Regional do Corpo de Bombeiros do Estado, tenente-coronel Moisés Fuchs.

Quem respondeu, seis dias depois, foi o capitão Alex da Rocha Camilo, chefe da Seção de Prevenção de Incêndio dos Bombeiros. No ofício, de 13 de setembro de 2011, o oficial diz que havia ocorrido uma inspeção na Kiss em 11 de agosto de 2011, um ano após o alvará ter vencido, que as irregularidades foram solucionadas e que um novo alvará havia sido emitido no mesmo dia.

Renovação estava em ‘fila de espera’

Já em 2012, os Bombeiros enviaram em outubro a notificação de que o alvará havia vencido dois meses antes. A boate solicitou inspeção 20 dias depois, já no mês de novembro. Segundo os Bombeiros, desde então o pedido estava em andamento.

O comandante do Corpo de Bombeiros de Santa Maria, coronel Fuchs, disse ao G1 que a corporação possui o cadastro de 8.600 prédios comerciais na cidade que precisam ser fiscalizados para liberação de alvará. Segundo ele, quando o estabelecimento pede a inspeção, a notificação entra em uma "fila de espera" para atendimento e que, por isso, pode demorar.

"O prazo médio que atendemos é de 30 dias, mas pode levar mais, até 90 dias, devido à diversos fatores. Eu queria ter efetivo para poder fiscalizar tudo com mais rapidez", afirmou em conversa com a reportagem, na quarta-feira (30). A reportagem tentou falar novamente com o comandante nesta quinta (31), mas ele falou que estava desautorizado a falar sobre isso.

Ministério Público pediu inspeção

Após receber um abaixo assinado de 80 moradores que reclamavam do barulho da boate, o Ministério Público instaurou um inquérito civil, em 17 de agosto de 2009, para apurar o tema. Na época, a casa noturna não tinha alvará de prevenção contra incêndio, que foi expedido pela primeira vez 11 dias depois.

A promotoria entrou em contato com os proprietários da Kiss, e obras foram feitas para tentar reduzir o ruído. O acordo foi assinado em 22 de novembro de 2011, três meses depois que o Corpo de Bombeiros expediu o segundo alvará, depois da casa ter operado sem a licença por quase um ano.

‘Barulho infernal’

Uma das moradoras que assinou o documento reclamando do barulho – e que pediu para não ser identificada – prestou depoimento à Polícia Civil após a tragédia. "O que nasceu irregular só podia acabar em tragédia. Aquela boate tinha um barulho infernal, não podíamos dormir, os ventiladores do teto faziam o barulho semelhante ao de um avião. Por isso procuramos o Ministério Público com o abaixo assinado para reclamar", disse ao G1.

Prisões

Quatro pessoa foram presas na segunda (28) por conta do incêndio: o dono da boate, Elissandro Calegaro Spohr; o sócio, Mauro Hofffmann; o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo Santos; e um funcionário do grupo, Luciano Augusto Bonilha Leão, responsável pela segurança e outros serviços. Nesta sexta-feira (1º), foi prorrogada por 30 dias a prisão temporária dos envolvidos.

Segundo o Ministério Público, a polícia diz que a manutenção da prisão é necessária porque há possibilidade de fuga caso eles sejam soltos nesta sexta, data em que se encerraria a prisão temporária de cinco dias expedidas pelo Judiciário.

Investigação

O delegado Marcos Vianna, responsável pelo inquérito do incêndio na boate Kiss, disse ao G1 na terça-feira (29) que uma soma de quatro fatores contribuiu para a tragédia ter acabado com tantos mortos: 1) o fato de a boate ter só uma saída e a porta ser de tamanho reduzido; 2) o uso de um artefato sinalizador em um local fechado; 3) o excesso de pessoas no local; e 4) a espuma usada no revestimento, que pode não ter sido a mais indicada e ter influenciado na formação de gás tóxico.

O delegado regional de Santa Maria, Marcelo Arigony, afirmou também na terça que a Polícia Civil tem "diversos indicativos" de que a boate estava irregular e não podia estar funcionando. "Se a boate estivesse regular, não teria havido quase 240 mortes", disse em entrevista. "Mas isso ainda é preliminar e precisa ser corroborado pelos depoimentos das testemunhas e os laudos periciais", completou.

Arigony disse ainda que a banda Gurizada Fandangueira utilizou um sinalizador mais barato, próprio para ambientes abertos e que não deveria ser usado durante show em local fechado. "O sinalizador para ambiente aberto custava R$ 2,50 a unidade e, para ambiente fechado, R$ 70. Eles sabiam disso, usaram este modelo para economizar. Usaram o equipamento para ambiente aberto porque era mais barato”, disse o delegado.

O vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo Santos, admitiu em seu depoimento à Polícia Civil que segurou um sinalizador aceso durante o show, de acordo com o promotor criminal Joel Oliveira Dutra. O músico disse, no entanto, que não acredita que as faíscas do artefato tenham provocado o incêndio. Ele afirmou que já havia manipulado esse tipo de artefato por diversas vezes em outras apresentações.



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