Política
Judas no Domingo de Ramos
26/03/2024
A narração bíblica aponta Judas Iscariotes como o discípulo de Jesus que o entregou à morte. Por isso, seu nome passou a ser sinônimo de traidor. A cada ano a tradição católica promove a “malhação do Judas”, muitas vezes escolhendo uma personalidade pública para ser representada por um boneco e ser queimado por populares na sexta-feira da Semana Santa. No Brasil o Judas deste ano apareceu, por antecipação, no Domingo de Ramos.
A “bomba” anunciada no último final de semana registra as prisões dos mandantes do assassinato de Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes. O que realmente causou grande surpresa foi a revelação de que o chefe da Polícia, Rivaldo Barbosa, teria planejado o crime. Mais do que isso, se reuniu com familiares e amigos da vítima hipotecando solidariedade e se comprometendo a envidar todos os esforços no sentido de elucidar os assassinatos covardes e brutais. O relatório conclusivo da Polícia Federal que motivou a decretação das prisões dá conta de que, ao contrário, o policial trabalhou no sentido de atrapalhar as investigações.
“Em vez de buscar uma linha de investigação que partisse de provas técnicas e concretas, a DHC enveredou pela construção de uma linha calcada em premissas absolutamente movediças, para apresentar à sociedade a tão cobrada elucidação do Caso Marielle e Anderson”, é o que esclarece o relatório da PF. Além disso, Rivaldo Barbosa recebia vantagens indevidas da contravenção para não investigar e não deixar investigar os homicídios por eles praticados, decorrentes das disputas para exploração do jogo do bicho. Quem administrava esses valores recebidos ilicitamente era sua esposa, que está agora usando tornozeleira eletrônica.
O traidor brasileiro que passou a ser conhecido no domingo pretérito, fingia ser amigo de Marielle e de seus correligionários. Enganou a todos. Mas ele não traiu só a família da líder política assassinada, ele traiu a corporação a que servia. Traiu o compromisso com a legalidade e a ética profissional. Traiu o Brasil que aguardava o desfecho esclarecedor dessa tragédia de motivações políticas.
Ficou evidenciada a promíscua relação entre o crime organizado e o poder público, numa indecorosa trama de corrupção. Esse quebra-cabeça não está encerrado. Muitas peças precisam ainda ser encaixadas. É necessário que sejam conhecidos os mandantes dos mandantes. Os promotores desse crime ficaram blindados por seis anos, o que sugere que forças poderosas articularam essa proteção aos assassinos. Agora o tempo é outro.
O traidor que o Brasil conheceu antes de ontem, coincidentemente aparece na semana em que o povo costuma rasgar bonecos que representam figuras de destaque no cenário político nacional. Só que de forma antecipada. É a maneira simbólica de protestar contra aqueles que costumam trair a confiança dos que neles depositaram credibilidade porque os consideravam pessoas sérias e responsáveis. O que nos consola é saber que a traição nunca triunfa. Rivaldo Barbosa é o Judas brasileiro deste ano. Mas ele não será apedrejado em praça pública como acontece com os bonecos que representam o traidor. A sua punição será judicial, encarcerado. Será que a sua consciência não está cobrando de que ele traiu a si mesmo? Sim, porque acreditando na impunidade, ousou fazer coisas que qualquer pessoa com o mínimo de autocrítica mereceria a própria censura.
A traição brasileira deste ano não “sextou”, como aconteceu com Jesus na última ceia. Ela “domingou”. Tenho dúvidas de que na cadeia o novo traidor sinta o mesmo remorso que Judas Iscariotes sentiu após entregar Cristo aos seus algozes.
Rui Leitão
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