Nadja Claudino

Mestre em História e Regionalidades

Cultura

A morte de Lampião e Maria Bonita nas páginas do Diário de Pernambuco


30/07/2024

No dia 29 de julho de 1938, o Diário de Pernambuco reservou sua primeira página para noticiar: “Lampião e mais onze cangaceiros foram mortos pela polícia alagoana na fazenda Angicos”. Na madrugada do dia anterior, 28 de julho, a volante alagoana, comandada pelo tenente João Bezerra, tomou a dianteira das outras volantes nordestinas e conseguiu pegar Lampião desprevenido no seu coito sergipano.

Com grande alarido e indisfarçável satisfação os telegramas que chegavam de várias cidades do interior nordestino mencionavam a mesma notícia: Lampião estava morto. Na reportagem ao se referirem a Lampião usavam muitas nomenclaturas: “Bandido”, “Chefe da Malta”, “Famigerado Rei do Cangaço”. Os homens que morreram foram chamados de seus “asseclas”, pegos desprevenidos no seu “covil”. O texto era de desumanização dos cangaceiros e legitimação da violência do Estado. As cabeças decepadas, em um primeiro instante, passaram como detalhes sem significância. Não houve em nenhum momento desta primeira reportagem um questionamento ou reprimenda ao ato. Mas em outras reportagens a decapitação dos cangaceiros foi discutida.

A violência infligida ao corpo dos cangaceiros foi motivo de espetacularização. Fotos de cabeças, descrição do martírio alimentava a excitação dos leitores das páginas dos jornais. O tenente João Bezerra entrou na cidade de Piranhas trazendo entre os dedos, penduradas pelos cabelos, as cabeças da rainha e do rei do cangaço. Naquele momento João Bezerra se cobria de glória e transformava Lampião e sua companheira Maria Bonita em mártires de uma história de amor romântico.

Se antes Maria Bonita mal era citada pelos jornais, depois de sua morte e nas notícias a respeito do ocorrido em Angicos, seu nome figurava em destaque junto ao de Lampião. O Paris-Soier dedicou quatro colunas à morte de Lampião com um artigo assinado por Jean Gear Fiyry, o qual termina dizendo: “Lampião, o invulnerável Lampeão, era o cruel que também amava. E esta ferida de amor matou-o talvez melhor do que a bala da volante” (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 02 ago. 1938) “Maria Bonita, a companheira de Lampião, que com elle morreu, tinha por nome Maria de Déa. Era uma cabocla de grande beleza, de lindo perfil, de curvas perfeitas. Nasceu na Bahia, na fazenda Malhada da Caiçara, em Geremoabo. Casara-se com um sapateiro de nome José de Nenén, deixando-o por Lampião, a quem conheceu aos 24 anos. Do rei do cangaço tivera um filhinho em plena caatinga. Certa ocasião Lampeão quisera matar o próprio filho porque chorava muito quando elle dormia. Maria Bonita, bella e corajosa, atravessou-se a frente do filhinho, obrigando-o com isso que Lampeão baixasse a mão assassina que se levantava contra o inocentinho, o sangue do seu sangue. Maria Bonita amava Lampião doidamente. Nunca o abandonava quando no combate. Com ele viveu, com ele morreu” (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 30 jul. 1938)

Na reportagem do correspondente especial dos Diários Associados, Afrânio Mello, é assim narrada a chegada das cabeças dos cangaceiros mortos em Angicos na cidade de Maceió. Segundo o texto, a cabeça de Lampião foi identificada por pessoas que o conheceram na sua vida como cangaceiro e mesmo antes da sua entrada no cangaço. A respeito de Maria Bonita, o correspondente especial se esmerou ao fazer a narração sobre os restos mortais da cangaceira e exaltou sua formosura.

As elaborações sobre a beleza de Maria atingiram até mesmo os médicos. Depois do desfile macabro das cabeças de Lampião, Maria Bonita e dos outros nove cangaceiros, as “peças” foram para o Instituto Médico-Legal de Maceió. O médico Lages Filho foi o primeiro a tomar as medidas dos crânios de Maria Bonita e Lampião. Ao examinar a cabeça de Maria Bonita o médico foi tomado do mesmo sentimento que movia as pessoas do povo, procurou a beleza tão difundida e acabou dizendo que o nome dela não desmentia os traços do seu rosto.

O corpo vilipendiado, a violência do Estado inscrita nessas cabeças volantes, morte demonstrativa de poder, corpos examinados, medidos, perscrutados. As cabeças dos cangaceiros foram levadas para o Instituto Nina Rodrigues em Salvador. Ficaram em exposição para os homens de ciência e para os curiosos, o macabro era lançado aos olhos. Olhos desejosos de tragédia e violência, violência “civilizatória”. Os cientistas da época procuravam sinais de criminalidade nos corpos dos cangaceiros, queriam provar uma tendência nata para o crime, a maldade inscrita no corpo, incurável, “de nascença”. Esse “instinto bestial” dos cangaceiros só poderia ser combatido com o uso de extremas formas de violência. O salvo conduto para o Estado matar esses homens e mulheres estava nas teorias como as de Lombroso, que qualificavam alguns com a marca de “degeneração”. O criminoso surgia assim como um “novo gênero”, o anormal que poderia ser identificado num exame clínico. Cabeças sem corpo, repletas de discursos médicos, criminais e jornalísticos.

Hoje, 86 anos anos depois, a luta com armas de repetição deu lugar a combates narrativos sobre o legado de Lampião e Maria Bonita, a Grota do Angico é visitada por pessoas de todos os lugares do Brasil que se identificam com a história desse casal que preencheu o imaginário popular com um amor radical, nascido na quentura do sertão, vivido sob a possibilidade da morte e da desgraça que no dia 28 de julho de 1938 se abateu sobre eles.


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